Por trás da paisagem, há sempre muito, muito mais

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Viver e deixar viver - Uma opção ou uma obrigação?


“Visto que não tenho contrato a prazo com a minha vida, afrouxo o freio quando chego numa descida mais perigosa. A vida do homem é uma estrada com subidas e descidas. Todas as pessoas sensatas avançam com um freio. Mas eu – é aqui que está o meu valor, patrão -, faz um bocado de tempo que eu joguei fora o meu freio, porque as carambolices não me metem medo
Excerto de Zorba o Grego de Nikos Kazantzakis

Há muito tempo que não escrevia neste espaço. Alegando a falta de tempo, o eufemismo para a falta de inspiração, deixei que o tempo corresse sem que me sentasse a reflectir[1] por escrito. Mas já chega, sinto falta de o fazer e hoje é um dia tão bom como qualquer outro.

O livro que hoje aqui me trás é Zorba, o Grego de Nikos Kazantzakis Falando da moralidade em estado puro, Zorba personifica o Homem angustiado com a vida, mas demasiado ocupado a vivê-la para se deixar abater por medos ou dúvidas.

Há uma passagem que ilustra bem esta ideia: “Porque se ri, amigo? Mas como explicar-lhes? Eu rio bruscamente, no momento em que estendo a mão para ver se o fio de ferro é bom, penso em o que é o homem, porque veio à terra a para que serve… Para nada, acho eu. Tudo é a mesma coisa: se tenho ou não uma mulher, se sou honesto ou desonesto, se sou paxá ou carregador. Há somente uma diferença: se estou vivo ou estou morto.”

Pareceram-me estranhas estas palavras, diferentes da minha escala de tonalidades em que, por preconceito, classifico o bom e o mau. Zorba é (é-o, no presente, porque o relato da sua história, do seu pensamento, tornou-o num ícone da sociedade grega e da humanidade) um homem que sofreu, que foi feliz mas que, de alguma forma, conseguiu retirar importância de todas as experiências que viveu. Reconhece-lhes o papel formador da sua personalidade, da sua história de vida, no entanto, ao contrário de Epícuro e seus discípulos, Zorba não abdica do prazer e do sofrimento como experiências fundamentais da humanidade. Não pensado a morte com a luz de um sentimento saudosista, de perda absoluta, Zorba sabe que estar vivo é uma oportunidade e vive a vida como o momento o exige e como a sua consciência ordena.

É esta forma de ver a vida que impede Zorba de se arrepender. Os remorsos existem, pois em vários momentos da narrativa sente-se triste pelo que fez, no entanto os acontecimentos que representam um peso na sua história de vida são inseridos em determinados estados de espírito e assim justificados por ele, sem que percam importância na construção do seu carácter, mas também, sem que representem um peso demolidor, incapacitante da continuidade da sua vida.

Exactamente porque a vida é uma oportunidade, a morte representa o seu fim e é tão natural como qualquer outro fenómeno neste planeta. Nascimento e morte são apenas dois pontos, nem mais nem menos do que isso. São importantes? Talvez!, mas apenas para nós próprios e para aqueles que amamos. No entanto, esta tomada de consciência da vulgaridade da morte não é, em momento algum, um salvo-conduto para a indiferença para com o outro ou para a maldade contra si próprio ou contra outrem. O próprio Zorba vive de acordo com a sua consciência, de acordo com o seu conjunto de valores que, acima de tudo, decretam que não deverá prejudicar os outros.

Numa outra interpretação do velho adágio de que a nossa liberdade termina onde começa a dos outros, Zorba é proactivo na protecção dos “temporariamente menos afortunados”. Não conseguindo ser feliz sozinha, a personagem esforça-se por alegrar os outros, muitas vezes com prejuízo da sua própria liberdade, haja visto o inesperado casamento com a sua Bubulina. Zorba é um indivíduo, reconhece que não depende dos outros para se manter vivo, mas não consegue ser completo sem o Patrão – alter ego do autor – ou convivendo com a infelicidade alheia.

Zorba é simples, é primitivo (no bom sentido, aquele que caracteriza quem é alheio à razão e à sua habitual companheira, a angústia depressiva), é o Ser Humano em estado puro. Perto do animal, sem segundas intenções, puro e sábio. Zorba não nega que por vezes é maldoso, que erra, que já agiu em proveito próprio em detrimento do dos outros, mas aceita que a pessoa que é agora, é a pessoa que aprendeu com os seus erros, é a pessoa que se sente melhor do que o seu Eu anterior, mas nunca melhor do que qualquer outro Ser Humano.

Insisto ainda no primitivo, porque tento justificar-me. Este é o adjectivo que caracteriza o indivíduo que não cede às convenções sociais e à lógica aprendida. Pensa por si e expressa o que pensa sem medo de críticas. Respeitando a liberdade dos outros, é absolutamente fiel ao seu livre arbítrio. Zorba é o seu expoente máximo.

A dança é, assim, a expressão deste pensamento. Se está triste, Zorba dança. Se está feliz, Zorba dança. Se não se consegue expressar por palavras, Zorba dança. Pela expressão não-verbal, pelo movimento do corpo como um todo, Zorba comunica. Sem subterfúgios, sem correntes, sem ressentimento, Zorba utiliza o tipo de comunicação mais primitivo (novamente este adjectivo tão complexo): o não-verbal. É esta a verdadeira comunicação, só pode sê-lo. Haverá qualquer língua que seja compreendida por todos os seres humanos, como o é a comunicação não-verbal? Não me refiro apenas à língua gestual (até certo ponto, muito intuitiva, mas nem sempre de fácil compreensão e expressão), mas ao movimento rítmico, ao movimento inspirado e poético. Falo da utilização das expressões faciais, dos pés, das mãos, do toque, de tudo aquilo de que somos dotados, antes mesmo de aprendermos a primeira palavra. O Homem assim expressa-se pelo que é, e compreende utilizando todos os seus sentidos.




[1] Reconheço a existência do acordo ortográfico, mas concedo-me a utilizá-lo quando também for ractificado pelos outros países lusófonos.

1 comentário:

  1. Talvez o destino de todos nós, nos surpreenda, (se bem que não sei se existe destino ,) mas sei que esse foi um post dos mais bem escritos que já li...sobre a vida, feito sob a comparação de Zorba. Zorba e eu... ou eu e Zorba...Adorei...Luiza !!!! Se pudesse levaria comigo...Mas é teu!!!

    Lindo...Lindo!!!

    Beijos desta admiradora!

    Lisa Loura

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