Por trás da paisagem, há sempre muito, muito mais

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O APOIO AO PRESTADOR DE CUIDADOS – QUE ESTRATÉGIAS?

“A pouco e pouco, os seus receios foram-se dissipando; a consciência desse contacto íntimo, inesperado (...) mantinha-se no entanto”

Aldous Huxley, excerto de “A Ilha

Eu e a enfermeira fomos efectuar uma visita domiciliária a um utente do Programa de Cuidados Continuados e à sua esposa, sua principal prestadora de cuidados. O que motivou esta visita foi o tratamento de uma úlcera de pressão no calcanhar do marido mas, mais uma vez, foi um motivo insuficiente para a necessidade de cuidados de enfermagem de que ambos os cônjuges necessitavam.

Assim que nós entrámos na casa do casal, dirigimo-nos directamente ao quarto do esposo. Este estava no leito e, durante todo o tratamento, foram raras quaisquer verbalizações da sua parte. A esposa, no entanto, manteve um discurso fluído, falando do pouco tempo que tinha para “tratar de outros assuntos” (sic) – como o pagamento de contas, compras, etc. - e que só podia fazê-lo num breve período do início da manhã.

Terminámos o tratamento da ferida e fomos lavar as mãos, a esposa seguiu-nos até à casa-de-banho com uma toalha. Aproveitando o momento, perguntei o que o esposo iria comer e que precauções costumava ter com a sua alimentação, já que o seu marido tem diabetes e faz diálise três vezes por semana. Mostrou-me o peixe que ainda iria cozinhar, falou-me dos truques que utilizava para o fazer comer carne com a sopa, “é que, sabe, eu tenho que ter muitos cuidados com a comida dele” (sic). Daqui, voltou a referir o pouco tempo que tinha para si própria e o facto de também não se sentir bem “a minha tensão está muito alta e isto está a piorar” (sic), “eu ando muito cansada” (sic). Perguntei porquê, o que se passava, quais as razões para o seu mal-estar e há quanto tempo já durava. Respondeu-me que já se tinha reformado há dois anos e que há um ano que andava “nisto” (sic). “Nisto o quê?”, perguntei. Respondeu-me, então, que estava cansada de andar com o marido de um lado para o outro, de estar sempre a ser solicitada por ele, de não conseguir dormir, de ter que estar preocupada todo o tempo que passava fora de casa com o que estava a acontecer com ele em casa, “estou esgotada” (sic) concluiu e, algures no arrebatamento do seu discurso, começou a chorar. “Eu não sei se aguento muito mais” (sic) disse num tom de desânimo.

Deixei que a torrente de palavras terminasse e toquei-lhe. Perguntei-lhe se tinha outra ajuda para cuidar do marido, tendo respondido que que não; o filho estava longe e só vinha a casa de vez em quando e que já não havia vagas para o apoio domiciliário do centro paroquial. Perguntei-lhe como era organizado o seu dia e disse-me que acordava de manhã, que lhe dava o pequeno-almoço, depois que o ajudava a tomar banho e, só então, saía de casa se fosse necessário. Voltava a casa, preparava o almoço, dava o almoço ao marido, este fazia a sesta e a esposa aproveitava para descansar. Assim que acordavam, repetiam-se as tarefas para o jantar e voltavam a dormir.

Nestas situações, a minha principal preocupação é arranjar uma solução milagrosa que resolva rapidamente o problema, mas as mais estranhas experiências provaram que eu não tenho solução para tudo e que a cada pessoa corresponde um tempo e uma maneira de agir que devem ser sempre tidas em conta. Por isso, comecei por elogiar o trabalho que a esposa tinha realizado até então, realizando reforço positivo, e procurei demonstrar-lhe o bem-estar que já tinha proporcionado ao marido, tanto através dos pequenos pormenores na sua alimentação, como através do voluntário investimento de todo o seu tempo nesta prestação de cuidados. Tentei mostrar-lhe que cuidados como estes tinham benefícios para o seu marido e que o seu bem-estar poderia ser uma fonte de satisfação para ela.

Mas, também é verdade que a prestação de cuidados só tem sentido se o prestador cuidar não só da pessoa cuidada mas também, e talvez principalmente, de si próprio. Um prestador de cuidados que relega a sua identidade e o seu prazer para segundo plano, parece-me, estará mais próximo da frustração e da sobrecarga, pois terá como única fonte de retorno os progressos da pessoa de quem cuida. Esta atitude poderá fazer o prestador de cuidados esquecer-se do que é ser feliz e, pior, esquecer-se do que o faz ser feliz. Dependendo apenas do bem-estar do outro como fonte de prazer, quaisquer alterações negativas no seu estado geral serão vividas por ambos com intensidades semelhantes, o problema de um passará a ser dos dois, tal como as suas consequências.

Por tudo isto, foquei ainda a minha intervenção na atenuação de pelo menos uma das manifestações: a falta de sono e de descanso, que poderá ser uma das causas da hipertensão. Identificando o período da sesta como o menos ocupado pelas exigências do cuidado, incentivei-a a utilizá-lo como um período para si própria, quer pela sesta, quer pela procura de actividades que lhe dessem prazer, tendo a esposa nomeado actividades manuais como crochêt e tricôt.

Concluído isto, incentivei-a a procurar novamente ajuda formal para a prestação de cuidados de higiene e talvez alimentação, tal como a sentir-se à vontade para expressar estes sentimentos às enfermeiras que efectuassem a visita domiciliária. Expliquei-lhe que estávamos ali também para a ajudar a adaptar-se à situação do seu marido e ao seu papel de prestadora de cuidados. A esposa assentiu, mas insistiu em pedir desculpa por ter chorado e agradeceu o tempo da entrevista, referindo que “por vezes preciso de falar” (sic), disse. Reiterei que não deveria pedir desculpa por chorar, já que a sua situação é complicada e nem sempre podemos mostrar que estamos bem, quando, na verdade, não estamos.

A entrevista terminou aqui e, pouco depois, saímos da casa.

O problema de enfermagem que aqui quis descrever é a sobrecarga do familiar prestador de cuidados que, para Sousa, Figueiredo e Cerqueira (2006) é o conjunto de problemas físicos, económicos e psicológicos causados pela situação de cuidados. A prestadora de cuidados aqui referida já manifesta o esforço psicológico e físico acrescido na prestação de cuidados.

Nesta situação, a esposa já está a ultrapassar os seus limites da resistência emocional na prestação de cuidados ao marido. Apresenta perturbações do sono, ingerência nas actividades de lazer e verbalizou que já está esgotada, cansada. Além disso, não tem uma rede social grande nem eficaz, dependendo dela própria a satisfação da maior parte das exigências do cuidado ao marido.

São várias as intervenções que poderiam ser desenvolvidas perante este problema. Se pensarmos na dimensão funcional da prestação de cuidados e nas inerentes actividades para a satisfação de exigências de higiene, alimentação e eliminação, estamos a falar de uma necessidade de apoio formal no desenvolvimento das actividades. Este pode ser desenvolvido por instituições privadas de solidariedade social ou, talvez, pelos próprios enfermeiros de cuidados continuados, se a sua dotação fosse suficiente. Além disso, da equipa do Programa de Cuidados Continuados faz parte uma assistente social que é o profissional mais habilitado para o estabelecimento de pontes com os serviços sociais de apoio ao domicílio. Mais se acrescenta que a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados também prevê, nos seus internamentos de longa duração, situações de sobrecarga do prestador de cuidados, onde o internamento da pessoa cuidada terá como principal objectivo o alívio do prestador de cuidados.

Quanto ao apoio na vivência do papel de prestador de cuidados, outras intervenções poderiam ser desenvolvidas. Uma delas é a manutenção de entrevistas de apoio e suporte psicológico realizadas pelo enfermeiro do Programa de Cuidados Continuados com frequência, intervenção esta já desenvolvida pelas enfermeiras. Nestas entrevistas, o enfermeiro pode compreender a forma como o prestador de cuidados se está a adaptar à situação, identificar com ele os seus principais problemas e, também com ele, desenvolver um plano de cuidados que não integre apenas a parceria nos cuidados à pessoa que está acamada ou mais dependente, mas também os objectivos e as intervenções que fazem do prestador de cuidados um cliente igualmente importante dos cuidados de enfermagem. Afinal, o enfermeiro de cuidados domiciliários não tem apenas como clientes os utentes inscritos para o tratamento de feridas, administração de terapêutica ou outros procedimentos técnicos, são seus clientes todos os membros do agregado familiar e, no caso de prestadores de cuidados não familiares, os amigos e vizinhos que assumam esse papel.

Eu reitero que nunca nos podemos esquecer de que a prestação de cuidados é uma pareceria entre o próprio prestador e a pessoa cuidada: o prestador cuida COM a pessoa cuidada porque esta última também desempenha um papel – menor ou menor – no seu auto-cuidado e, da mesma forma, o prestador de cuidados tem que se ter na conta de um Ser Humano ao qual também correspondem necessidades que, se ignoradas, implicam uma degradação progressiva do seu bem-estar bio-psico-social.

Esta intervenção descrita é individual porque se desenvolve com apenas um prestador de cuidados de cada vez e também personalizada porque é única e os seus moldes são irrepetíveis. Mas questiono-me: não será possível desenvolver uma intervenção de acompanhamento de prestadores de cuidados em grupo?

Pensando nos benefícios de um grupo de apoio, com ele estaremos perante um momento partilha de experiências, identificação com o outro e comprensão de si próprio. Couceiro (1998) defende que a transmissão da vivência é essencial para a construção de uma experiência com significado. Ora, podendo partilhar as suas vivências – os melhores e piores momentos e até mesmo os pormenores do dia-a-dia – poderia ajudar os prestadores de cuidados a encontrarem um significado e, até mesmo, uma finalidade para o esforço que desenvolvem. Desenvolvida esta finalidade, seria mais fácil o empenho e a integração das actividades desenvolvidas num projecto de vida próprio.

A intervenção num grupo de apoio permite, ainda, a identificação com as experiências dos outros. Sentimentos negativos, geradores de culpa e pesar poderiam encontrar eco nas experiências de outros cuidadores. Sabendo que o outro, igual e mim em circunstância, vive da mesma forma esta situação, que o outro se sente tão incomodado como eu, o meu sentimento de culpa será atenuado, pois compreenderei que o meu ressentimento é o mesmo de outro. Então, porque é que ambos nos ressentimos? O que há de comum nas nossas histórias para suscitarem sentimentos semelhantes? Através de raciocínios como este, os prestadores de cuidados num grupo de apoio, poderiam analisar as suas experiências até ao cerne do seu significado e, assim, desconstruir mitos e sentimentos nocivos, tanto para o prestador de cuidados, como para a pessoa cuidada.

Outra das vantagens deste tipo de intervenção é trazida pela frequência das reuniões e por uma certa obrigatoriedade – claro que trabalhada e não exigida. Se os prestadores de cuidados se encontrarem em grupo, semanalmente, na presença do enfermeiro, este terá a oportunidade de avaliar situações de cuidados, mesmo quando o utente dependente já teve alta. Além disso, o enfermeiro pode desenvolver intervenções educativas no sentido de capacitar o prestador de cuidados para exercer ainda melhor o seu papel.

Esta intervenção exige um esforço acrescido dos enfermeiros; no entanto, os seus benefícios a longo prazo trazidos pela capacitação adequada dos prestadores de cuidados para exercerem o seu duplo papel de auto-cuidador e cuidador de outrém, poderiam torná-la uma intervenção vantajosa. Haverá uma incidência menor da sobrecarga do cuidador e de depressão, condições que impossibilitam o prestador de cuidados de desenvolver a sua actividade e, por isso, sobrecarregando as redes de apoio formal; e, inclusivamente, diminuir a incidência de problemas decorrentes da imobilidade, como úlceras de pressão, degenerações osteo-articulares, desnutrição, etc.

Voltando a pegar na situação acima descrita, a intervenção que desenvolvi está integrada no plano de cuidados do enfermeito responsável pela visita domiciliária desta família, limitei-me apenas a dar continuidade ao trabalho desenvolvido. No entanto, é de planear um contacto brevemente com o centro paroquial que a esposa referiu ou outra instituição privada de solidariedade social que venha diminuir a sobrecaraga física da cuidadora.

BILBIOGRAFIA

COUCEIRO, M. – Autoformação e transformação das práticas profissionais dos professores. In Revista de educação. Vol VII. Nº 2 1998

SOUSA, Liliana; FIGUEIREDO, Daniela; CERQUEIRA, Margarida – Envelhecer em Família: Os cuidados familiares na velhice. 2ªedição. Porto: ÂMBAR – Ideias no Papel, 2006. ISBN: 972-43-1152-X.

terça-feira, 8 de junho de 2010

O ACOMPANHAMENTO DOMICILIÁRIO – QUEM DEFINE A SUA PERTINÊNCIA?


“Os homens já se esqueceram desta verdade – disse a raposa – Mas tu não te deves esquecer dela. Ficas responsável para todo o sempre por aquilo que está preso a ti. Tu és responsável pela tua rosa”

Antoine de Saint-Exupèry, excerto de “O principezinho

Até agora, as minhas experiências enquanto estudante de enfermagem estão demasiado interligadas com o hospital. Lá, comecei a aprender o que é assistir o Ser Humano em situações de extrema vulnerabilidade súbitas. Foi no hospital que me deparei com os efeitos do acaso, do imprevisto e que tive de aprender a lidar com a família e o cliente que sofrem um processo de luto pela perda da vida vivida até então. Foi no hospital que dei, com a família, os primeiros passos na preparação para a transição do hospital para o domicílio, que tive que, também com a família e o seu elemento internado, antever as dificuldades que iriam experimentar para se adaptarem à nova situação de doença.

Foi nesta preparação que compreendi o quão inexperiente era para ajudar a família a regressar a casa. Eu podia conhecer as complicações que determinada doença crónica acarretava, sabia as dificuldades que determinado episódio agudo implicava, mas não conhecia o verdadeiro contexto da pessoa que vive em casa com uma doença que implica alteração do seu nível de dependência. Desconhecia o que significa realmente “cuidar em casa” – Que preocupações? Que necessidades? Que motivações? Que alterações na vida de toda a família?

Foi neste contexto e com estas peocupações em mente, que surgiu a minha necessidade de desenvolver um ensino clínico na comunidade e no verdadeiro contexto de vida das pessoas de quem cuido e cuidarei ao longo da minha vida. Só assim, acredito, poderei prestar cuidados de enfermagem realmente completos e abrangentes da vida singular de cada indivíduo e da dinâmica familiar a que pertence.

Um dos primeiros momentos de inquietante aprendizagem foi uma visita pré-alta dos Cuidados Continuados de Enfermagem, a uma cliente com cirurgia recente do hallux. Eu e a enfermeira entrámos na casa. Papel de parede antigo revestia as paredes numa viagem à primeira metade do século XX, complementada por móveis com aplicações e pinturas douradas. À porta, estava uma mulher septuagenária, com cabelo pintado de loiro e penteado armado. Estava sozinha e guiou-nos, claudicante, até ao seu quarto – uma divisão pequena, dominada pela cama de casal e iluminada por luz natural. Sentou-se na beira da cama e indicou-nos a cama e a cadeira à sua frente para nos sentarmos.

Realizei o tratamento da sutura operatória, já totalmente cicatrizada e coloquei o penso protector, seguindo as instruções da dona do pé que esteve sempre atenta aos movimentos. Durante todo este tempo, a senhora falou-nos do seu problema de osteoartrose, das varizes que há anos operou e que agora “voltaram a incomodar”(sic), fez-nos uma súmula da sua história de doenças. O seu discurso era pontuado por breves interrogações nossas e exclamações de dor quando o toque das minhas mãos atingia zonas sensíveis do seu pé.

Depois de lavarmos as mãos perguntei, fora tudo aquilo que nos tinha relatado, como se tinha sentido globalmente nos últimos dias. Uma simples pergunta – “Como tem passado?” repercutiu estrondosamente no comportamento da senhora. De uma atitude de serena conformação, passou para o choro e tristeza pungentes. Entre lágrimas disse que estes dias não tinham sido fáceis, não por causa do pé, não por causa do forçado repouso, nem por causa da dor. Por nenhuma das razões que à partida nos tinham levado à sua casa; mas porque a visita do Papa tinha tornado mais fortes as lembranças da irmã falecida há três anos.

Falou-nos da sua relação com a irmã, do apoio que tinham sido uma para a outra, das histórias em conjunto. Sentia muito a sua falta. A partir daí, falou-nos da sua filha que faleceu aos 3 anos de idade, dos seus 40 anos de viuvez e de como nunca se tinha sentido tão sozinha como a partir da morte da sua irmã.

Durante o relato pouco interviemos, só quando a intensidade do discurso amainou é que dirigimos a entrevista até ao momento presente. Como era a sua vida agora? Quem a apoiava? Quem a visitava? O que gostava de fazer? Com estas perguntas tentámos procurar no “agora” o que de bom existia na sua vida. Então, falou-nos da vizinha que muito a apoiava – “Todos os dias vem cá”(sic) – falou-nos de outras vizinhas com quem também podia contar e, a pouco e pouco, os seus olhos secaram. O seu discurso tornou-se pragmático e explicou-nos em que consistiam os apoios que recebia, o que ainda fazia por si própria e o que esperva voltar a fazer assim que o pé melhorasse.

Terminámos a entrevista pouco depois mas, ainda antes de nos despedirmos, pediu desculpa por ter chorado, não o queria ter feito, mas as lembranças eram demasiado fortes. Dissemos que não eram necessárias quaisquer desculpas pois ninguém deve pedir perdão por algo que lhe é tão natural e necessário. Pediu-nos que regressássemos mais tarde, disse-nos que seríamos sempre benvindas, embora a data de regresso permanecesse indefenida.

Esta situação trouxe-me algumas inquietações. Uma delas tem que ver com o motivo da visita domiciliária (VD) e as reais intervenções de enfermagem. No Programa de Cuidados Continuados do Centro de Saúde da Alameda, a primeira VD implica, na maioria das vezes, uma prescrição médica inicial quer seja para tratamento de feridas ou administração de injectáveis. Já as visitas de vigilância e acompanhamento, não, são planeadas pelo enfermeiro.

Ora, na primeira visita, o enfermeiro nunca se limitará a desenvolver as intervenções prescitas pelo médico – ou interdependentes. Levará a cabo, também, intervenções autónomas como a avaliação da situação de saúde do cliente, do seu contexto social, do impacto da situação na família e do impacto da situação no próprio cliente (RICE, 2004). Aliás, o próprio tratamento duma ferida implica muito mais do que a escolha de alguns apósitos, implica uma definição de objectivos com o cliente e implica um trabalho de parceria baseado no compromisso mútuo. Então, pergunto-me: Será sempre necessária a prescrição médica? O enfermeiro não poderá decidir se inicia, ou não, o acompanhamento domiciliário?

Por tudo o que aqui se decreve, a resposta óbvia é sim, o enfermeiro pode e deve tomar essa decisão, mas não é tão linear como parece. Por um lado, sendo o enfermeiro um profissional autónomo, com quadro referencial próprio e preparado para o processo de tomada de decisão, tem toda a competência para decidir o desenvolvimento, ou não, de acompanhamento domiciliário, baseado nas necessidades de enfermagem. Afinal, as intervenções de enfermagem no domicílio do cliente excedem, em muito, as prescrições do médico. Isto significa que os motivos da VD devem englobar todas as necessidades humanas, tal como as vê a diciplina de Enfermagem. Relegar a decisão sobre o início do acompanhamento, ou não, por enfermeiros, ao médico, é segmentar a pessoa e reduzi-la à sua existência biológica.

Já no que diz respeito ao término do acompanhamento domiciliário, a situação inverte-se. O enfermeiro decide até onde se devem efectuar VD’s; e esta é uma das grandes diferenças entre os cuidados continuados e o hospital. No hospital, o fim do internamento tende a depender da alta clínica e, em alguns casos, da alta social. Raramente o enfermeiro tem a última palavra, principalmente se os profissionais de saúde só funcionarem em equipa pelo nome. No entanto, nos cuidados continuados, é o enfermeiro que decide até onde deve ir o tratamento. É o enfermeiro quem conhece melhor a situação do cliente e as suas respostas, estando mais habilitado para decidir quando deve cessar o acompanhamento.

Voltando à pergunta - Será sempre necessária a prescrição médica? – e à situação descrita, existe ainda uma necessidade de cuidados de enfermagem, apesar da alta. Pela NANDA, o diagnóstico de enfermagem “Risco de Solidão” implica algumas das características aqui relatadas: diminuição da rede social informal e aumento do nível de dependência (CARPENITO-MOYET, 2005). Remetendo-nos este diagnóstico para o necessário desenvolvimento da relação enfermeiro-cliente, podemos reportar-nos a Hildegard Peplau e às 4 fases que a teórica descreveu para esta relação: orientação, identificação, exploração e resolução (MARRINER-TOMEY e ALLIGOOD, 2004). Estas fases, idependentemente da duração da relação devem existir de forma mais, ou menos, pronunciada. A fase correspondente à situação descrita é a de resolução que, para Marriner-Tomey e Alligood (2004), implica a construção de objcetivos novos, diferentes daqueles definidos perante a situação de doença, e a separação do enfermeiro e do cliente. Por isso, é importante que, quando o acompanhamento domiciliário começa a chegar ao fim, se comecem a estabelecer metas além da situação de doença e que se integrem num projecto de vida em desenvolvimento, que deve ultrapassar o momento actual de necessidades.

No exemplo descrito foi importante trabalhar com a cliente os factores que promovem o seu bem-estar e que existem “agora”.

Para Marriner-Tomey e Aligood (2004), Peplau também defende que o enfermeiro tem, entre outros papéis, o de conselheiro que ajuda o cliente a compreender a sua situação actual de doença, ajudando-o a integrá-la na sua história de vida, tal como a percebe. Este papel, num tempo de interacção tão curto como o aqui descrito (para este problema actual, nós – enfermeira e eu – só visitámos a senhora uma vez. Nos dias anteriores, a VD foi realizada por outras enfermeiras), não está necessariamente comprometido. Dele irradiam intervenções como as realizadas: preparação para o regresso à vida quotidiana, anterior à cirurgia; reforço dos recursos (as vizinhas); e planeamento de formas de satisfação das necessidades humanas fundamentais.

Justificada a pertinência da decisão autónoma do enfermeiro sobre a realização, ou não, de acompanhamento domiciliário, é importante compreender que esta decisão nem sempre depende da existência de necessidades humanas básicas por satisfazer. Afinal, a teoria será cega se não adaptada à prática e o Programa de Cuidados Continuados deste Centro de Saúde tem uma dotação de enfermeiros muito inferior à ideal. Querendo isto dizer que, intervenções como as aqui descritas podem, sim, ser realizadas, mas em tempo útil da VD para tratamento, vigilância ou administração de terapêutica, tornando-se supérfluas quando entram em competição com necessidades ainda mais fundamentais de outros clientes do Programa. No entanto, no quadro de valores e documentos orientadores da prática de enfermagem – como o é o Guia das Competências do Enfermeiro de Cuidados Gerais – estas necessidades e intervenções não são supérfluas, tornando-se necessária a re-avaliação dos actuais recursos do Programa de Cuidados Continuados. Só assim se poderão prestar cuidados de enfermagem de qualidade – como já o são – mas completos – como só o aumento do tempo de VD pode permitir.

Eu sei que do Programa de Cuidados Continuados deste Centro de Saúde faz parte uma equipa de profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, assistente social e psicóloga. No entanto, a conclusão a que quero chegar é que o acompanhamento domiciliário implica um conjunto de competências que o enfermeiro domina e que excedem em muito as prescrições médicas, logo, a determinação da necessidade de acompanhamento, quer seja o seu início ou o seu prolongamento, também deverá ser dependente do parecer do enfermeiro. Sendo que, necessidades que não implicam inervenções instrumentais, mas que fazem parte dos focos de atenção do Enfermeiro devem, também elas constituir motivos para o início da visita domiciliária. Um exemplo prático seria o acompanhamento desta senhora, mesmo após a cicatrização da sutura, tendo em vista a realização de entrevistas de apoio e suporte psicológico não só para aumentar o nível de independência da cliente, mas também para desenvolver estratégias de coping face à situação de luto que a cliente ainda vive.

BILBIOGRAFIA

CARPENITO-MOYET, Lynda H. - Diagnósticos de enfermagem : aplicação à prática clínica. 10ª ed. Porto Alegre: Artmed Editora. 2005. ISBN: 85-363-0187-2.

MARRINER-TOMEY, Ann; ALLIGGOD, Martha R. - Teóricas de enfermagem e a sua obra : modelos e teorias de enfermagem. 5ª ed. Loures: Lusociência. 2004. ISBN: 972-8383-74-6.

RICE, Robyn - Prática de enfermagem nos cuidados domiciliários : conceitos e aplicação. 3ª ed. Loures: Lusociência. 2004. ISBN: 972-8383-46-0.