Por trás da paisagem, há sempre muito, muito mais

terça-feira, 8 de junho de 2010

O ACOMPANHAMENTO DOMICILIÁRIO – QUEM DEFINE A SUA PERTINÊNCIA?


“Os homens já se esqueceram desta verdade – disse a raposa – Mas tu não te deves esquecer dela. Ficas responsável para todo o sempre por aquilo que está preso a ti. Tu és responsável pela tua rosa”

Antoine de Saint-Exupèry, excerto de “O principezinho

Até agora, as minhas experiências enquanto estudante de enfermagem estão demasiado interligadas com o hospital. Lá, comecei a aprender o que é assistir o Ser Humano em situações de extrema vulnerabilidade súbitas. Foi no hospital que me deparei com os efeitos do acaso, do imprevisto e que tive de aprender a lidar com a família e o cliente que sofrem um processo de luto pela perda da vida vivida até então. Foi no hospital que dei, com a família, os primeiros passos na preparação para a transição do hospital para o domicílio, que tive que, também com a família e o seu elemento internado, antever as dificuldades que iriam experimentar para se adaptarem à nova situação de doença.

Foi nesta preparação que compreendi o quão inexperiente era para ajudar a família a regressar a casa. Eu podia conhecer as complicações que determinada doença crónica acarretava, sabia as dificuldades que determinado episódio agudo implicava, mas não conhecia o verdadeiro contexto da pessoa que vive em casa com uma doença que implica alteração do seu nível de dependência. Desconhecia o que significa realmente “cuidar em casa” – Que preocupações? Que necessidades? Que motivações? Que alterações na vida de toda a família?

Foi neste contexto e com estas peocupações em mente, que surgiu a minha necessidade de desenvolver um ensino clínico na comunidade e no verdadeiro contexto de vida das pessoas de quem cuido e cuidarei ao longo da minha vida. Só assim, acredito, poderei prestar cuidados de enfermagem realmente completos e abrangentes da vida singular de cada indivíduo e da dinâmica familiar a que pertence.

Um dos primeiros momentos de inquietante aprendizagem foi uma visita pré-alta dos Cuidados Continuados de Enfermagem, a uma cliente com cirurgia recente do hallux. Eu e a enfermeira entrámos na casa. Papel de parede antigo revestia as paredes numa viagem à primeira metade do século XX, complementada por móveis com aplicações e pinturas douradas. À porta, estava uma mulher septuagenária, com cabelo pintado de loiro e penteado armado. Estava sozinha e guiou-nos, claudicante, até ao seu quarto – uma divisão pequena, dominada pela cama de casal e iluminada por luz natural. Sentou-se na beira da cama e indicou-nos a cama e a cadeira à sua frente para nos sentarmos.

Realizei o tratamento da sutura operatória, já totalmente cicatrizada e coloquei o penso protector, seguindo as instruções da dona do pé que esteve sempre atenta aos movimentos. Durante todo este tempo, a senhora falou-nos do seu problema de osteoartrose, das varizes que há anos operou e que agora “voltaram a incomodar”(sic), fez-nos uma súmula da sua história de doenças. O seu discurso era pontuado por breves interrogações nossas e exclamações de dor quando o toque das minhas mãos atingia zonas sensíveis do seu pé.

Depois de lavarmos as mãos perguntei, fora tudo aquilo que nos tinha relatado, como se tinha sentido globalmente nos últimos dias. Uma simples pergunta – “Como tem passado?” repercutiu estrondosamente no comportamento da senhora. De uma atitude de serena conformação, passou para o choro e tristeza pungentes. Entre lágrimas disse que estes dias não tinham sido fáceis, não por causa do pé, não por causa do forçado repouso, nem por causa da dor. Por nenhuma das razões que à partida nos tinham levado à sua casa; mas porque a visita do Papa tinha tornado mais fortes as lembranças da irmã falecida há três anos.

Falou-nos da sua relação com a irmã, do apoio que tinham sido uma para a outra, das histórias em conjunto. Sentia muito a sua falta. A partir daí, falou-nos da sua filha que faleceu aos 3 anos de idade, dos seus 40 anos de viuvez e de como nunca se tinha sentido tão sozinha como a partir da morte da sua irmã.

Durante o relato pouco interviemos, só quando a intensidade do discurso amainou é que dirigimos a entrevista até ao momento presente. Como era a sua vida agora? Quem a apoiava? Quem a visitava? O que gostava de fazer? Com estas perguntas tentámos procurar no “agora” o que de bom existia na sua vida. Então, falou-nos da vizinha que muito a apoiava – “Todos os dias vem cá”(sic) – falou-nos de outras vizinhas com quem também podia contar e, a pouco e pouco, os seus olhos secaram. O seu discurso tornou-se pragmático e explicou-nos em que consistiam os apoios que recebia, o que ainda fazia por si própria e o que esperva voltar a fazer assim que o pé melhorasse.

Terminámos a entrevista pouco depois mas, ainda antes de nos despedirmos, pediu desculpa por ter chorado, não o queria ter feito, mas as lembranças eram demasiado fortes. Dissemos que não eram necessárias quaisquer desculpas pois ninguém deve pedir perdão por algo que lhe é tão natural e necessário. Pediu-nos que regressássemos mais tarde, disse-nos que seríamos sempre benvindas, embora a data de regresso permanecesse indefenida.

Esta situação trouxe-me algumas inquietações. Uma delas tem que ver com o motivo da visita domiciliária (VD) e as reais intervenções de enfermagem. No Programa de Cuidados Continuados do Centro de Saúde da Alameda, a primeira VD implica, na maioria das vezes, uma prescrição médica inicial quer seja para tratamento de feridas ou administração de injectáveis. Já as visitas de vigilância e acompanhamento, não, são planeadas pelo enfermeiro.

Ora, na primeira visita, o enfermeiro nunca se limitará a desenvolver as intervenções prescitas pelo médico – ou interdependentes. Levará a cabo, também, intervenções autónomas como a avaliação da situação de saúde do cliente, do seu contexto social, do impacto da situação na família e do impacto da situação no próprio cliente (RICE, 2004). Aliás, o próprio tratamento duma ferida implica muito mais do que a escolha de alguns apósitos, implica uma definição de objectivos com o cliente e implica um trabalho de parceria baseado no compromisso mútuo. Então, pergunto-me: Será sempre necessária a prescrição médica? O enfermeiro não poderá decidir se inicia, ou não, o acompanhamento domiciliário?

Por tudo o que aqui se decreve, a resposta óbvia é sim, o enfermeiro pode e deve tomar essa decisão, mas não é tão linear como parece. Por um lado, sendo o enfermeiro um profissional autónomo, com quadro referencial próprio e preparado para o processo de tomada de decisão, tem toda a competência para decidir o desenvolvimento, ou não, de acompanhamento domiciliário, baseado nas necessidades de enfermagem. Afinal, as intervenções de enfermagem no domicílio do cliente excedem, em muito, as prescrições do médico. Isto significa que os motivos da VD devem englobar todas as necessidades humanas, tal como as vê a diciplina de Enfermagem. Relegar a decisão sobre o início do acompanhamento, ou não, por enfermeiros, ao médico, é segmentar a pessoa e reduzi-la à sua existência biológica.

Já no que diz respeito ao término do acompanhamento domiciliário, a situação inverte-se. O enfermeiro decide até onde se devem efectuar VD’s; e esta é uma das grandes diferenças entre os cuidados continuados e o hospital. No hospital, o fim do internamento tende a depender da alta clínica e, em alguns casos, da alta social. Raramente o enfermeiro tem a última palavra, principalmente se os profissionais de saúde só funcionarem em equipa pelo nome. No entanto, nos cuidados continuados, é o enfermeiro que decide até onde deve ir o tratamento. É o enfermeiro quem conhece melhor a situação do cliente e as suas respostas, estando mais habilitado para decidir quando deve cessar o acompanhamento.

Voltando à pergunta - Será sempre necessária a prescrição médica? – e à situação descrita, existe ainda uma necessidade de cuidados de enfermagem, apesar da alta. Pela NANDA, o diagnóstico de enfermagem “Risco de Solidão” implica algumas das características aqui relatadas: diminuição da rede social informal e aumento do nível de dependência (CARPENITO-MOYET, 2005). Remetendo-nos este diagnóstico para o necessário desenvolvimento da relação enfermeiro-cliente, podemos reportar-nos a Hildegard Peplau e às 4 fases que a teórica descreveu para esta relação: orientação, identificação, exploração e resolução (MARRINER-TOMEY e ALLIGOOD, 2004). Estas fases, idependentemente da duração da relação devem existir de forma mais, ou menos, pronunciada. A fase correspondente à situação descrita é a de resolução que, para Marriner-Tomey e Alligood (2004), implica a construção de objcetivos novos, diferentes daqueles definidos perante a situação de doença, e a separação do enfermeiro e do cliente. Por isso, é importante que, quando o acompanhamento domiciliário começa a chegar ao fim, se comecem a estabelecer metas além da situação de doença e que se integrem num projecto de vida em desenvolvimento, que deve ultrapassar o momento actual de necessidades.

No exemplo descrito foi importante trabalhar com a cliente os factores que promovem o seu bem-estar e que existem “agora”.

Para Marriner-Tomey e Aligood (2004), Peplau também defende que o enfermeiro tem, entre outros papéis, o de conselheiro que ajuda o cliente a compreender a sua situação actual de doença, ajudando-o a integrá-la na sua história de vida, tal como a percebe. Este papel, num tempo de interacção tão curto como o aqui descrito (para este problema actual, nós – enfermeira e eu – só visitámos a senhora uma vez. Nos dias anteriores, a VD foi realizada por outras enfermeiras), não está necessariamente comprometido. Dele irradiam intervenções como as realizadas: preparação para o regresso à vida quotidiana, anterior à cirurgia; reforço dos recursos (as vizinhas); e planeamento de formas de satisfação das necessidades humanas fundamentais.

Justificada a pertinência da decisão autónoma do enfermeiro sobre a realização, ou não, de acompanhamento domiciliário, é importante compreender que esta decisão nem sempre depende da existência de necessidades humanas básicas por satisfazer. Afinal, a teoria será cega se não adaptada à prática e o Programa de Cuidados Continuados deste Centro de Saúde tem uma dotação de enfermeiros muito inferior à ideal. Querendo isto dizer que, intervenções como as aqui descritas podem, sim, ser realizadas, mas em tempo útil da VD para tratamento, vigilância ou administração de terapêutica, tornando-se supérfluas quando entram em competição com necessidades ainda mais fundamentais de outros clientes do Programa. No entanto, no quadro de valores e documentos orientadores da prática de enfermagem – como o é o Guia das Competências do Enfermeiro de Cuidados Gerais – estas necessidades e intervenções não são supérfluas, tornando-se necessária a re-avaliação dos actuais recursos do Programa de Cuidados Continuados. Só assim se poderão prestar cuidados de enfermagem de qualidade – como já o são – mas completos – como só o aumento do tempo de VD pode permitir.

Eu sei que do Programa de Cuidados Continuados deste Centro de Saúde faz parte uma equipa de profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, assistente social e psicóloga. No entanto, a conclusão a que quero chegar é que o acompanhamento domiciliário implica um conjunto de competências que o enfermeiro domina e que excedem em muito as prescrições médicas, logo, a determinação da necessidade de acompanhamento, quer seja o seu início ou o seu prolongamento, também deverá ser dependente do parecer do enfermeiro. Sendo que, necessidades que não implicam inervenções instrumentais, mas que fazem parte dos focos de atenção do Enfermeiro devem, também elas constituir motivos para o início da visita domiciliária. Um exemplo prático seria o acompanhamento desta senhora, mesmo após a cicatrização da sutura, tendo em vista a realização de entrevistas de apoio e suporte psicológico não só para aumentar o nível de independência da cliente, mas também para desenvolver estratégias de coping face à situação de luto que a cliente ainda vive.

BILBIOGRAFIA

CARPENITO-MOYET, Lynda H. - Diagnósticos de enfermagem : aplicação à prática clínica. 10ª ed. Porto Alegre: Artmed Editora. 2005. ISBN: 85-363-0187-2.

MARRINER-TOMEY, Ann; ALLIGGOD, Martha R. - Teóricas de enfermagem e a sua obra : modelos e teorias de enfermagem. 5ª ed. Loures: Lusociência. 2004. ISBN: 972-8383-74-6.

RICE, Robyn - Prática de enfermagem nos cuidados domiciliários : conceitos e aplicação. 3ª ed. Loures: Lusociência. 2004. ISBN: 972-8383-46-0.

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