Por trás da paisagem, há sempre muito, muito mais

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Fé e Ateísmo – Conceitos compatíveis?


“Enquanto existir, por efeitos das leis e dos costumes, uma condenação social, que produza infernos artificiais no seio da civilização, e desvirtue com uma fatalidade humana o destino, que é inteiramente divinal (…), enquanto houver na terra ignorância e miséria, não serão os livros como este, de certo, inúteis.”
Victor Hugo, excerto da nota introdutória d’Os Miseráveis

    Será o ateísmo uma religião? Pergunto-me tal coisa porque comparo a forma de pensar de um absolutamente céptico ateu com a de um ferveroso crente de uma religião. Pensando no que o ateísmo representa, a negação veemente e proactiva da inexistência de fundamentos para a religião e de qualquer poder que ultrapasse, nas palavras de Shakespeare, aquilo que é sonhado pela filosofia humana; e naquilo que a religião representa, a crença conjunta, normalmente veemente, e proactiva na existência de um poder superior, sublimado; tornam-se claras as afinidades entre estes dois conceitos.
     São conceitos diferentes, é certo, mas com objectivos e normas de conduta semelhantes: Veja-se:  ambas têm uma crença (na divindade ou na sua inexistência) e ambas esforçam-se por fazê-la chegar aos outros pelo uso da palavra. Por certo, ambas as posições têm comprovados benefícios para as pessoas que as defendem, mas também têm a prepotência de acreditarem que o correcto a fazer é convencer os outros da correcção da sua própria escolha de vida e de pensamento.
     No entanto, o ateísmo desperta em mim um sentimento de revolta que não existe quando analiso outras religiões. Quando penso na retórica inflamada de um ateu perante um crente seguro das suas próprias ideias, lembro-me de uma cena marcante do filme Green Mile.
      Nesta cena, a personagem interpretada por Tom Hanks, guarda prisional, assegura a um condenado à morte (papel desempenhado por Eduard Delacroix), a poucas horas da sua execução, que o rato que tão carinhosamente cuidou durante o seu encarceramento irá para a Ratolândia, viverá feliz, conhecerá outros ratos, com quem viverá por muitos anos. Enquanto o guarda prisional descreve este idílio, o condenado – um homem cujos crimes, naquele momento,  já não importam – chora. Despede-se do rato como se este fosse (e provavelmente era-o) o seu único ente querido na terra.
    Mais tarde nesse dia, já sentado na cadeira eléctrica, um outro guarda prisional sem escrúpulos, interpretado por David Morse, diz-lhe, nos escassos momentos antes da execução!, que a Ratolândia não existe e que aquele rato é tão insignificante, pequeno e sem importância, como qualquer outro rato de esgoto. O prisioneiro chora novamente e, com estoicismo, recebe o massacre que se segue (quem viu a cena sabe do que falo).
    Quando o guarda prisional interpretado por Tom Hanks faz este condenado acreditar que existe realmente uma Ratolândia e que nela aquele rato terá um final feliz, restitui-lhe a réstia de fé, a réstia de esperança que um Homem pode ter nos momentos anteriores a uma morte com hora marcada. Quando a desesperança é tudo aquilo que se pode esperar, a fé é uma luz bruxuleante no final do túnel; uma crença inabalável, inverosímil e arrebatadora de que, no final, tudo ficará bem.
       Mas, no momento em que o outro guarda prisional, num cruel e desnecessário acto de despeito lhe nega esta última luz, aquele condenado descobre e vive o derradeiro medo do Ser Humano consciente: o não sermos nada, tal como nada é o que nos rodeia, e que ao nada voltaremos. Com palavras vazias de bondade e de respeito pelo sofrimento alheio, este guarda prisional abala, para este condenado, os seus alicerces da fé num mundo melhor.
        É isto que acredito que, num consideravelmente reduzido grau de crueldade!, um ateu faz quando tenta fazer ver ao crente que a sua forma de vida é errada e que aquilo em que sempre acreditou não existe. Dizer a um crente de uma religião monoteísta, por exemplo, que não existe Deus e fazê-lo crer nisso, é retirar-lhe as pedras basilares da sua moral, da sua conduta; é dizer-lhe que não haverá final feliz e isso, parece-me, é triste. É revelador de um auto-conceito, por parte do ateu, demasiado inflamado que o leva a CRER que está certo porque não existem provas em contrário (um argumento tão frágil, como simplesmente acreditar que existe Deus). É triste porque combate o direito de todo o Ser Humano de se iludir a si mesmo.
     Não defendo que a ilusão seja uma forma correcta ou saudável de viver a vida, no entanto, não existe nenhuma receita universal sobre como vivê-la e, por isso, cada um tem o direito de viver a vida ou sonhá-la como bem entender.
     Também não quero aqui defender que todos deveríamos ser crentes, se o pensasse, contrariaria o que acabo de escrever. Defendo sim o direito à fé, o direito de acreditar num mundo melhor, num “eu” melhor! Isto obriga-me a questionar o que é realmente a fé. Não será um sentimento de certeza absoluta, isento de um raciocínio lógico que infalivelmente o comprove? A fé, por definição e enquanto fenómeno vivenciado, não pode ser decomposta pela dúvida metódica.
      Se a fé não é científica, poderá um ateu ter fé? Acredito que a resposta se inclina perigosamente para o não. Nas palavras de Kant, a fé é “o modo moral de pensar da razão quando adere àquilo que é inacessível ao conhecimento teórico”. É, por isso, a crença naquilo que ainda não foi provado e, para todos os efeitos, uma necessidade de muitos Seres Humanos. O ateu, com a sua esmagadora necessidade de compreender e decompor todos fenómenos em seu redor, carece da sensibilidade necessária para simplesmente acreditar.
     É isto que me incomoda no ateísmo. É esta negação (ou chacota) de um direito individual. É este atentado perpetrado contra a sanidade mental das pessoas crentes, com quem os ferverosos ateus digladiam a sua retórica cheia de certezas verdadeiras apenas por hoje, tal como a história no-lo tem mostrado.
      É por isto também que escolhi o excerto da nota introdutória d’Os Miseráveis para cabeçalho. A fé, quer seja uma manifestação da sensibilidade do Ser Humano em apreender aquilo que não é palpável ou comprovável pela razão actual, quer seja uma necessidade latente associada à religião (e por isso, estigmatizada) ela é um direito! E, como direito, deveria estar a salvo da dissecação crua e cruel pelo raciocínio lógico.

Luiza Benatti

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Viver e deixar viver - Uma opção ou uma obrigação?


“Visto que não tenho contrato a prazo com a minha vida, afrouxo o freio quando chego numa descida mais perigosa. A vida do homem é uma estrada com subidas e descidas. Todas as pessoas sensatas avançam com um freio. Mas eu – é aqui que está o meu valor, patrão -, faz um bocado de tempo que eu joguei fora o meu freio, porque as carambolices não me metem medo
Excerto de Zorba o Grego de Nikos Kazantzakis

Há muito tempo que não escrevia neste espaço. Alegando a falta de tempo, o eufemismo para a falta de inspiração, deixei que o tempo corresse sem que me sentasse a reflectir[1] por escrito. Mas já chega, sinto falta de o fazer e hoje é um dia tão bom como qualquer outro.

O livro que hoje aqui me trás é Zorba, o Grego de Nikos Kazantzakis Falando da moralidade em estado puro, Zorba personifica o Homem angustiado com a vida, mas demasiado ocupado a vivê-la para se deixar abater por medos ou dúvidas.

Há uma passagem que ilustra bem esta ideia: “Porque se ri, amigo? Mas como explicar-lhes? Eu rio bruscamente, no momento em que estendo a mão para ver se o fio de ferro é bom, penso em o que é o homem, porque veio à terra a para que serve… Para nada, acho eu. Tudo é a mesma coisa: se tenho ou não uma mulher, se sou honesto ou desonesto, se sou paxá ou carregador. Há somente uma diferença: se estou vivo ou estou morto.”

Pareceram-me estranhas estas palavras, diferentes da minha escala de tonalidades em que, por preconceito, classifico o bom e o mau. Zorba é (é-o, no presente, porque o relato da sua história, do seu pensamento, tornou-o num ícone da sociedade grega e da humanidade) um homem que sofreu, que foi feliz mas que, de alguma forma, conseguiu retirar importância de todas as experiências que viveu. Reconhece-lhes o papel formador da sua personalidade, da sua história de vida, no entanto, ao contrário de Epícuro e seus discípulos, Zorba não abdica do prazer e do sofrimento como experiências fundamentais da humanidade. Não pensado a morte com a luz de um sentimento saudosista, de perda absoluta, Zorba sabe que estar vivo é uma oportunidade e vive a vida como o momento o exige e como a sua consciência ordena.

É esta forma de ver a vida que impede Zorba de se arrepender. Os remorsos existem, pois em vários momentos da narrativa sente-se triste pelo que fez, no entanto os acontecimentos que representam um peso na sua história de vida são inseridos em determinados estados de espírito e assim justificados por ele, sem que percam importância na construção do seu carácter, mas também, sem que representem um peso demolidor, incapacitante da continuidade da sua vida.

Exactamente porque a vida é uma oportunidade, a morte representa o seu fim e é tão natural como qualquer outro fenómeno neste planeta. Nascimento e morte são apenas dois pontos, nem mais nem menos do que isso. São importantes? Talvez!, mas apenas para nós próprios e para aqueles que amamos. No entanto, esta tomada de consciência da vulgaridade da morte não é, em momento algum, um salvo-conduto para a indiferença para com o outro ou para a maldade contra si próprio ou contra outrem. O próprio Zorba vive de acordo com a sua consciência, de acordo com o seu conjunto de valores que, acima de tudo, decretam que não deverá prejudicar os outros.

Numa outra interpretação do velho adágio de que a nossa liberdade termina onde começa a dos outros, Zorba é proactivo na protecção dos “temporariamente menos afortunados”. Não conseguindo ser feliz sozinha, a personagem esforça-se por alegrar os outros, muitas vezes com prejuízo da sua própria liberdade, haja visto o inesperado casamento com a sua Bubulina. Zorba é um indivíduo, reconhece que não depende dos outros para se manter vivo, mas não consegue ser completo sem o Patrão – alter ego do autor – ou convivendo com a infelicidade alheia.

Zorba é simples, é primitivo (no bom sentido, aquele que caracteriza quem é alheio à razão e à sua habitual companheira, a angústia depressiva), é o Ser Humano em estado puro. Perto do animal, sem segundas intenções, puro e sábio. Zorba não nega que por vezes é maldoso, que erra, que já agiu em proveito próprio em detrimento do dos outros, mas aceita que a pessoa que é agora, é a pessoa que aprendeu com os seus erros, é a pessoa que se sente melhor do que o seu Eu anterior, mas nunca melhor do que qualquer outro Ser Humano.

Insisto ainda no primitivo, porque tento justificar-me. Este é o adjectivo que caracteriza o indivíduo que não cede às convenções sociais e à lógica aprendida. Pensa por si e expressa o que pensa sem medo de críticas. Respeitando a liberdade dos outros, é absolutamente fiel ao seu livre arbítrio. Zorba é o seu expoente máximo.

A dança é, assim, a expressão deste pensamento. Se está triste, Zorba dança. Se está feliz, Zorba dança. Se não se consegue expressar por palavras, Zorba dança. Pela expressão não-verbal, pelo movimento do corpo como um todo, Zorba comunica. Sem subterfúgios, sem correntes, sem ressentimento, Zorba utiliza o tipo de comunicação mais primitivo (novamente este adjectivo tão complexo): o não-verbal. É esta a verdadeira comunicação, só pode sê-lo. Haverá qualquer língua que seja compreendida por todos os seres humanos, como o é a comunicação não-verbal? Não me refiro apenas à língua gestual (até certo ponto, muito intuitiva, mas nem sempre de fácil compreensão e expressão), mas ao movimento rítmico, ao movimento inspirado e poético. Falo da utilização das expressões faciais, dos pés, das mãos, do toque, de tudo aquilo de que somos dotados, antes mesmo de aprendermos a primeira palavra. O Homem assim expressa-se pelo que é, e compreende utilizando todos os seus sentidos.




[1] Reconheço a existência do acordo ortográfico, mas concedo-me a utilizá-lo quando também for ractificado pelos outros países lusófonos.