Por trás da paisagem, há sempre muito, muito mais

terça-feira, 25 de maio de 2010

Vamos re-pensar os valores da nossa luta?

Há umas semanas recebi este desconcertante e-mail sobre a opinião de um jornalista sobre a última greve de enfermeiros.


«A lata dos enfermeiros, segunda parte

Os enfermeiros marcaram umas férias, perdão, uma greve de quatro dias. Porquê? Não se percebe. Mas fica a ideia de que querem ganhar mais do que os médicos.

Henrique Raposo (www.expresso.pt)
9:00 | Terça-feira, 30 de Março de 2010

I. A lata dos enfermeiros continua . Para começar, uma greve séria não tem quatro dias. Uma greve séria não é marcada para os quatro dias imediatamente anteriores ao feriado da Páscoa. Assim, até parece que os senhores enfermeiros marcaram umas férias antecipadas. Caro enfermeiro, se não quer ser confundido com o lobo, não lhe vista a pele.
II. Fazer reivindicações sem sentido é o desporto do nosso sindicalismo. Os enfermeiros não são excepção. Agora, Suas Excelências querem ganhar 1200 euros logo no início de carreira. Não se percebe porquê. Em primeiro lugar, um licenciado na função pública não pode ganhar 1200 logo à partida (se ganhar, o país enlouqueceu mesmo). Em segundo lugar, se ganhar 1200 euros, um enfermeiro fica a ganhar quase tanto como um médico em início de carreira. E, lamento, isso não faz sentido.
III. A diferença entre os 1500 euros do jovem médico e os 1000 euros do jovem enfermeiro é a diferença justa. Aliás, parece-me que já beneficia, e muito, o enfermeiro. Porque a responsabilidade do médico é, obviamente, superior à do enfermeiro. Dentro do hospital, o médico é superior ao enfermeiro.Lamento, mas as coisas são assim, por mais lógicas corporativas que os enfermeiros invoquem. O corporativismo sindical não pode abolir as óbvias diferenças técnicas e de responsabilidade que existem dentro de um hospital.
IV. Quando se fala com os enfermeiros, parece existir sempre uma espécie de ressentimento "classista" contra os médicos. É como se os enfermeiros estivessem a gritar contra os médicos: "olhem, olhem, nós agora também somos licenciados, e sabemos tanto como vocês". Será por isso que os enfermeiros não fazem o trabalho "sujo" nos hospitais? Será por isso que tem de haver aquele batalhão de auxiliares para as tarefas sujas e simples? O dr. enfermeiro já é demasiado fino para limpar o rabo aos velhinhos? É isso?"»


Não sei se fico mais ofendida com o jornalista e com o expresso por terem publicado esta ofensa pública e em massa, ou se fico triste com o trabalho que temos desenvolvido - enquanto classe de profissionais de saúde - até agora na construção de uma opinião pública consistente e de acordo com a verdadeira intervenção dos profissionais de enfermagem.

Senti que esta declaração não poderia ter ficado sem resposta, por isso, enviei a seguinte resposta para o correio do expresso, não tendo obtido qualquer contra-resposta, pelo menos até ao momento:


"Caro Senhor Jornalista,
Antes de mais, permita-me que me apresente. O meu nome é Luiza Benatti e estou a terminar o 4º e último ano da Licenciatura em Enfermagem na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. É por isto que farei parte do contingente de beneficiados (ou prejudicados) das actuais negociações entre o SEP e o Ministério da Saúde. Esta é uma das razões que me levaram a insurgir-me contra tão tola publicação num dos mais importantes jornais do país. Observemos o seu "artigo" de opinião em detalhe:
I. A greve de quatro dias marcada na véspera da Páscoa em nada tem que ver com uma extensão do tempo de férias. Até como calculo que saiba, os enfermeiros, principalmente colaboradores de um hospital, não têm uma semana como a maioria dos profissionais portugueses, trabalham por turnos em regime de Rolman, ora isto significa que, independentemente da data da greve, os dias que a antecedem e que a seguem serão dias de trabalho como quaisquer outros.
II e III. Como ousa comparar os ordenados de duas classes profissionais tão diferentes? Como ousa comparar os ordenados de colegas de equipa? Algures no seu artigo, afirma que não faz sentido que "um enfermeiro ganhe quase tanto como o médico", expressão engraçada esta... Sentido? Como o senhor deve, com certeza, saber, quando um enfermeiro termina a licenciatura tem uma carga horária de prestação de cuidados (em estágios) em muito superior à do "jovem medico" que inicia o internato (já a ganhar os 1200euros...). Por isto, está muito mlehor preparado para exercer as suas funções que o "jovem médico" - em quase todas as profissões, quem tem mais experiência ganha mais. Mas também não é por isto que a porca torce o rabo.
Eu acredito que ninguém deve ser premiado por realizar aquilo que é seu dever - fazê-lo é acreditar que o insuficiente é aceitável. Pois bem, cada macaco no seu galho, o que quer dizer que cada profissional desenvolve as intervenções necessárias para que sejam cumpridas as responsabilidades que lhe são atribuídas. Isto quer dizer que não se discute os peso das responsabilidades (tarefa inglória...), mas sim a qualidade do desempenho de um profissional e o seu papel dentro de uma equipa de cuidados de saúde que é composta pelo médico, pelo enfermeiro, pelo psicólogo, pelo assistente social, pelo fisioterapeuta... - o senhor que mesmo entrar na discussão de quem é mais importante que quem?
Depois, o senhor alguma vez foi internado? Se não foi, um dia compreenderá que não será com o médico que vai contar as 24h de um dia de internamento. Será o enfermeiro que passará mais tempo consigo, com a sua família. Será o enfermeiro que alertará o médico caso haja complicações e será o enfermeiro que lhe administrará toda a terapêutica. Por isto, meu senhor, não venha afirmar que a grandes responsabilidades devem corresponder grandes vencimentos, porque eu lhe pergunto de volta: Qual é a responsabilidade de um jogador da equipa de futebol principal do Benfica para receber o que eu, o senhor e mais uns vinte enfermeiros ganham em conjunto?
IV. E porque tal conclusão não poderia ficar sem reposta, nós não queremos ganhar tanto como os médicos, porque sabemos tanto como eles, o que queremos é uma oportunidade justa de manter a nossa dignidade enquanto profissão. O que queremos é que nos seja reconhecida a validade dos nossos conhecimentos - que dizem respeito à disciplina de Enfermagem.
Por último, errado está o enfermeiro que delega as "tarefas sujas" (não foi o que disse?!) aos assistentes operacionais, e a classe não deve ser representada por essas excepções. Intervenções como a prestação de cuidados de higiene no leito e a mudança da fralda de um adulto dizem respeito a momentos de extrema vulnerabilidade da vida humana. É nesses momentos que o Ser Humano necessita de mais consideração e atenção e, meu senhor, os profissionais da relação, peritos no acompanhamento emocional deste tipo de situações, somos nós. Na verdade, poucos são os profissionais que acedem ao privilégio de acompanhar os últimos momentos da vida de um ser humano, e nós fazemo-lo por dever, formação e responsabilidade.
Agradeço a sua atenção e espero que em nenhum momento desta missiva eu tenha sido ofensiva, se se sentiu lesado não era a minha intenção. Com esta resposta, queria apenas fazer-lhe chegar, por palavras, a minha indignação e ajudá-lo a compreender aquilo que nós, enfermeiros, por vezes temos dificuldade em mostrar às pessoas que não têm contacto connosco em contexto de saúde e doença.
O meu e-mail é benatti_luiza@hotmail.com e estou disponível para qualquer troca de ideias.
Muito obrigada pelo seu tempo
Os melhores cumprimentos
Luiza Benatti"

É importante que nos preocupemos mais em desconstruir esta imagem da "enfermeira ajudante do médico", do que em subir de estatuto. Se pensarmos bem, uma casa não se constrói pelo telhado e se o enfermeiro não conseguir provar a todos os portugueses - que tenham experimentado ou não os cuidados de saúde - a sua importância, não conseguirá nenhum aliado na conquista de outros direitos.

Os cuidados Continuados

Mais de um ano sem escrever...
Na verdade, tive uma séria dificuldade em regressar ao blog e, por isso, foi complicado voltar a pôr aqui os pés... Peço desculpa, a todos os eventuais interessados nos meus pensamento enquanto estudante de enfermagem e, em breve, enfermeira.
Bem, neste momento estou no 4º ano de licenciatura - a terminá-lo - e vou entrar no mercado de trabalho. A sensação ainda me assusta, vou estar sozinha e vou ter que provar, talvez mais do que até agora fiz, aquilo que eu valho.
Mas não é disso que venho hoje aqui falar. Agora, estou a desenvolver estágio num centro de saúde de Lisboa, no programa de cuidados continuados integrados. Posso dizer que estou a adorar a experiência, até agora, tenho ficado "demasiado" tempo em hospitias e por isso, acredito, tenho perdido grande parte da relação enfermeiro-cliente. Peço que não me interpretem mal com isto, quero apenas afirmar que a visita domiciliária trás preciosos ganhos para esta relação. É na visitação domiciliária regular que se forjam laços verdadeiros entre o enfermeiro e o cliente. É na visitação domiciliária que entramos na casa do cliente, que passamos a fazer parte da sua vida quotidiana e é na visitação que lhe damos poder. Aquela é a casa do cliente, não do enfermeiro, independentemente da opinião técnica deste último, a última palavra será sempre do cliente. Saber isto, dá-nos, pelo menos, a sensação de um verdadeiro trabalho em parceria. Em pé de igualdade, enfermeiro e cliente constroem um projecto em conjunto e desenvolvem-no segundo as metas que AMBOS definiram.
No hospital os projectos existem, mas o cliente tende a sentir-se intimidado e a deixar a cargo dos profissionais as decisões mais importantes que, em última análise, continuam a pertencer-lhe. Trabalhar esta omissão auto e hetero imposta do cliente é um dos desafios dos enfermeiros em serviços de internamento, tão aliciante como as intervenções em cuidados continuados.
Além disso, o enfermeiro no domicílio tem que ser necessariamente um gestor de caso. É o enfermeiro neste contexto que centraliza as necessidades de prestação de cuidados de saúde, sendo através dele que se articulam as intervenções dos outros profissionais de saúde.
Em suma, esta está a ser uma experiência inesquecível, sobre a qual pretendo escrever com muito mais assiduidade do que com a que tenho escrito até agora...