Por trás da paisagem, há sempre muito, muito mais

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Individualmente insatisfeitos ou colectivamente felizes?

“Agrada-me também a seguinte definição: o homem feliz é aquele para quem nada é bom ou mau à margem de uma alma boa ou má; esse homem pratica aquilo que é honesto e contenta-se com a virtude”
Séneca, Da vida Feliz

      O mundo está decididamente diferente. Não o digo fazendo comparações dentro dos meus 20 anos de vida, digo-o porque acredito que no espaço de dois séculos a humanidade mudou muito.
     Em tempos, conversando com colegas de trabalho, surgiu o velho adágio “se todos gostassemos do amarelo, o que seria do vermelho?”, pois poucas frases definem tão bem a sociedade individualista e de consumo em que vivemos. Quer tomemos como exemplo a organização do orçamento familiar ou a própria estrutura de uma família, sempre podemos encontrar em cada sujeito uma força individual dissonante do grupo com quem vive; sempre podemos encontrar alguém que acredita ter todo o direito de seguir o amarelo – leia-se o seu próprio conjunto de valores e gostos – ainda que dissonantes dos do resto do seu grupo de pertença.
    Alberoni e Veca (2000) ajudam-me a clarificar este ponto. Em O Altruísmo e a Moral, os autores defendem que existe uma proliferação de crenças individuais, não existindo um padrão de crenças ou, de uma forma metafórica, um pilar moral. Na verdade, na sociedade ocidental – e refiro-me a ela porque é a minha e talvez a que eu compreenda melhor – cada um tem a sua própria moral apesar de viver colectivamente. Cada Ser Humano define por si próprio o certo e o errado, apesar da convivência em sociedade implicar um acordo comum nas regras de conduta.
    Sintomático desta falta de princípios globais – princípios e não leis! – é o crescente desrespeito que as gerações mais novas têm pelas mais velhas. Se pensarmos que o livre arbítrio degenerou na escolha arbitrária do eixo de valores de cada um, poderemos observar uma tendência das gerações mais novas de acreditarem que só as suas crenças são actuais e válidas. Mas retomarei este assunto mais adiante.
Uma paleta de princípios morais tão variada como esta obriga a uma atitude de tolerância generalizada, sendo que ser excessivamente tolerante significa aceitar que tudo pode estar certo. Se assim for, existirão atitudes erradas? Se sim, quem, ou o que, as define? São as crenças comuns que impõem limites a TODOS os membros de uma sociedade. Se elas não existirem, quais são os pontos de referência de cada elemento de uma sociedade? Em última análise, como se define a identidade de cada elemento se não existe um conjunto de crenças que delimite e descreva as características de um grupo? Por conseguinte, numa sociedade progressivamente anónima – por que cada um tem um conjunto de valores que mais ninguém reconhece – quais são os referenciais de pertença?
    Se está cada Ser Humano por si e pelo seu bem-estar, onde estão os grandes objectivos da humanidade? Quem olhará além do seu umbigo para lhes dedicar a atenção devida? Atenção esta ditada pela solidariedade e altruísmo que a condição humana exige.
     Por vezes penso que um formigueiro será mais eficiente enquanto sociedade que toda a sociedade humana ocidental. Não lutam as formigas de um mesmo formigueiro pela sobrevivência de todo o grupo? Não são elas exemplo da dedicação absoluta, do auto-sacrifício e da abnegação de que nós nos proclamamos únicos bastiões?
    A organização das nossas famílias mostra-nos isto. Tendencialmente nucleares, as novas gerações tendem a tomar como certa a saída de casa dos pais, um desejo compreensível dentro de uma perspectiva demasiado tolerante. Afinal, na casa dos pais fica um casal a envelhecer e que, a certa altura, irá precisar de cuidados que os filhos estarão demasiado ocupados ou distantes para prestarem. A solução passa, infeliz e maioritariamente, pela antecâmara da morte – apodo que alguns idosos dão aos lares que, na verdade, não passam de salas de espera colectivas pela próxima morte. Deixou de existir o patriarca ou a matrona, já não se pedem conselhos aos mais velhos. Parece que a sabedoria, agora, tem prazo de validade.
    Abrangendo ainda mais esta observação, já não se contratam para as empresas pessoas com mais de 50 anos – são velhas – e a experiência perde-se, preterida a um estilo de organização que só tem em consideração o lucro e o rendimento de um conjunto de trabalhadores – mais uma vez uma massa anónima de seres humanos.
    Pensando bem, talvez seja este o paradoxo da nossa sociedade: cada Ser Humano tem uma forma de pensar própria e acha-se especial por isso, no entanto, para a sociedade que o criou e que ele próprio mantém, ele não é mais do que uma peça numa engrenagem gigante. Pior, a engrenagem que ele se esforça por acompanhar não lhe atribui maior importância do que à sua capacidade de trabalho e é, ela própria, destituída de sentido. Na verdade, criámos uma sociedade cada vez menos sustentável e que, analisando com cuidado, não serve para coisa alguma. Qual é o objectivo das grandes empresas e empreendimentos que não o lucro? E para que serve o lucro senão para satisfazer as necessidades e o bem-estar de uns poucos infelizes? O que ganha o trabalhador senão o seu ordenado para gastar a pagar dívidas e a manter-se vivo para continuar a trabalhar para continuar a pagar as contas? Onde está o sentido da vida de cada Ser Humano? Qual é o papel de CADA Ser Humano?
     Acredito que numa verdadeira sociedade todos os papéis estão definidos e cada Ser Humano é realmente especial porque a sua acção na comunidade é importante e ele não deverá querer desenvolver outro papel que não o seu! Só assim, creio, cada um sabe exactamente quem é, não só porque sabe o que é esperado dele, mas também porque é reconhecido por isso! Tal não acontece na nossa sociedade, porque não existem papéis verdadeiramente definidos, existem demasiadas áreas cinzentas que dificultam, ou até mesmo impossibilitam, a definião da identidade de cada um. Se eu não souber quem sou, como posso saber o que esperam de mim? Como defino os limites da minha acção? Como sei o que está certa ou errada?
     Por tudo isto, parece-me que o mais importante nunca poderá ser o bem individual, mas sim o bem maior para todos, porque se todos nos importarmos com todos, não existirá negligência, não existirá abandono, não existirá indiferença. Se o problema do outro for o meu problema, a minha vida terá um significado maior do que a sobrevivência aos outros. Afinal e, regressando ao adágio inicial e utilizando-o como metáfora, se todos gostarmos do amarelo, seremos mais fortes. Partilharemos princípios, crenças e objectivos, mas se cada um tiver uma cor preferida, uma crença e um objectivo próprio, estaremos a remar contra a maré sozinhos até ficarmos sem forças para continuar. Talvez o problema da nossa sociedade seja o seu tamanho descomunal, mas cada um de nós pode fazer a diferença e esforçar-se pelo outro, para compreendê-lo, para ajudá-lo, ainda que isso comprometa o nosso bem-estar. Só assim, acredito, valerá a pena viver!

2 comentários:

  1. Excelente reflexão. E como me revejo em tantas fases do li! ... por tudo que dizes e por tudo aquilo que não foi dito, digo que é por essas e por outras que continuo a acreditar nas pessoas. Todos temos direito a ter um trabalho seja qual for a sua idade, mas também deveriamos começar todos a assumir que para além de um direito,trabalhar é um DEVER.
    Em relação á família, grupo de amigos, conviventes estamos de facto numa sociedade ingrata e que insiste em negligenciar o saber dos mais velhos. Mantenho a esperança nos jovens que como tu fazem toda a diferença em cada dia que vivem... com intensidade... preocupação ... sentido de responsabilidade... dedicação. Bem hajas por tudo.

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  2. Excelente reflexão. E como me revejo em tantas fases do que li! ... por tudo que dizes e por tudo aquilo que não foi dito, digo que é por essas e por outras que continuo a acreditar nas pessoas. Todos temos direito a ter um trabalho seja qual for a sua idade, mas também deveriamos começar todos a assumir que para lém de um direito, oa oportunidade de trabalhar é um DEVER.
    Em relação á família, grupo de amigos, conviventes estamos de facto numa sociedade ingrata e que insiste em negligenciar o saber dos mais velhos. Mantenho a esperança nos jovens que como tu fazem toda a diferença em cada dia que vivem... com intensidade... preocupação ... sentido de responsabilidade... dedicação. Bem hajas por tudo.

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