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terça-feira, 11 de janeiro de 2011

AS ESCOLHAS – RACIONALIDADE OU ILUSÃO?

“No fundo da alma, contudo, ela esperava um acontecimento. Como os marinheiros em perigo, lançava olhos desesperados sobre a solisão da sua vida, procurando ao longe qualquer vela branca nas brumas do horizonte”

Gustave Flaubert, excerto de Madame Bovary

Estou agora a ler Madame Bovary de Flaubert. Ainda no começo, o livro já mostra pontos de bastante interesse para discussão e aquele que aqui gostaria de comentar é o período inicial do casamento dos Bovary. Além do homem iludido com a própria vida e que desconhece em absoluto a esposa que escolheu, temos a esposa: sonhadora e que vive com a mente envolvida em sonhos e com uma assombrosa capacidade para construir ilusões sem qualquer fundamento experiencial. Ela cria vidas perigosamente hipotéticas que a fazem, num limite da sanidade, sentir-se infeliz com a própria vida e a esperar, sentada – claro - que um impulso - do nada - traga a mudança para a sua vida.

É a mente desta esposa que gostaria de trazer a esta discussão – monólogo, para ser mais exacta. Fala-se aqui do sonho em si, associado às frustrações e às metas que definimos para a nossa vida e da espera indolente de que o que quer que queiramos nos venha para às mãos sem qualquer esforço.

Quanto à construção de sonhos, quero lembrar que temos tendência, enquanto indivíduos da sociedade ocidental – vetada ao progresso -, de reger a nossa vida de acordo com objectivos. Pautamos todas as nossas decisões pelos projectos a que aderimos ou que desenvolvemos. Inconscientemente acreditamos na ideia de que apenas quando produzimos e apresentamos resultados somos úteis. Chegamos, inclusivamente, a considerar quem não produz, um preguiçoso, um parasita.

Pois bem, está clara uma tendência da humanidade ocidental – em assustador processo de globalização – de se tornar escrava dos seus próprios projectos, a uma constatação dolorosa e inevitável de que “AINDA não sou feliz”. Parece-me, então, que estão assim lançadas as bases para a frustração, quer tenhamos projectos pragamáticos – trabalhar, ter filhos, casar, etc. – quer vivamos de ilusões.

Analisemos os projectos pragmáticos, uma cadeia perpétua de objectivos a atingir, um atrás do outro, sendo que atingir um não implica a tão ansiada felicidade, mas sim o começo de uma nova pulsão para atingir o objectivo seguinte, até que a morte nos detenha. Estamos sempre a ansiar, a querer mais e, no meio desta escalada, esquecemo-nos do que é realmente importante: a viagem, porque, no final de contas, é essa a nossa vida. Não vivemos apenas quando atingimos os objectivos – esses são pontos altos – vivemos todos os segundos das nossas vidas.

Não quero aqui negar a importância de um projecto de vida próprio, desenvolvido por cada um de nós. O que aqui defendo é a manutenção de uma perspectiva global de si durante o desenvolvimento deste projecto, pois ao depositarmos toda a nossa expectativa no cumprimento de uma meta, perdemos a consciência do que realmente somos. Se segmentarmos a nossa vida nos objectivos que atingimos, perdemos a noção do todo e, pelo caminho, perdemos a nossa própria identidade. Afinal, quem somos não se define pelos objectivos que atingimos, mas sim pela forma e pelo empenho que empregámos. Se os fins não justificam os meios, serão então, os meios a parte principal de um projecto e, por conseguinte, veiculantes do cunho pessoal que cada um dá à sua vida. O que é importante não é sabermos o que fizémos, mas sim como e porque o fizémos.

Isto trás-me de volta ao tema original, a mente de Ema Bovary, a esposa, e ao conceito de ilusão. Considerando tudo o que aqui foi escrito, compreende-se a relação entre a construção consciente de um projecto de vida e um auto-conceito realista. Quer isto dizer que devemos considerar as nossas capacidades, os nossos limites e nosso contexto na construção destes projectos. É esta a diferença entre um projecto realista e uma ilusão. Sendo que, nesta lógica, uma pessoa iludida com os objectivos que pode atingir, é uma pessoa alienada, que desconhece o mundo em que vive e, pior, desconhece-se a si mesma. Erasmo[1] já o escreveu, a felicidade consiste em querer ser o que se é. Ou seja, é feliz aquele cuja vida é o que sempre pretendeu, aquele que é realista nas suas pretensões.

Em momento algum coloco em dúvida o facto de ser a insatisfação perpetuamente renovada o motor do progresso humano. O que me pergunto, é se será realmente este o caminho para a realização humana. Se a nossa vida é uma escada de objectivos – muitas vezes ditados pela sociedade em que vivemos – não seremos mais do que peças que trabalham para um objectivo comum que nenhum de nós sabe realmente identificar?



[1] Elogio da Loucura

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