“Enquanto existir, por efeitos das leis e
dos costumes, uma condenação social, que produza infernos artificiais no seio
da civilização, e desvirtue com uma fatalidade humana o destino, que é
inteiramente divinal (…), enquanto houver na terra ignorância e miséria, não
serão os livros como este, de certo, inúteis.”
Victor
Hugo, excerto da nota introdutória d’Os
Miseráveis
Será o ateísmo
uma religião? Pergunto-me tal coisa porque comparo a forma de pensar de um
absolutamente céptico ateu com a de um ferveroso crente de uma religião.
Pensando no que o ateísmo representa, a negação veemente e proactiva da
inexistência de fundamentos para a religião e de qualquer poder que ultrapasse,
nas palavras de Shakespeare, aquilo que é sonhado pela filosofia humana; e naquilo
que a religião representa, a crença conjunta, normalmente veemente, e proactiva
na existência de um poder superior, sublimado; tornam-se claras as afinidades entre
estes dois conceitos.
São conceitos
diferentes, é certo, mas com objectivos e normas de conduta semelhantes:
Veja-se: ambas têm uma crença (na
divindade ou na sua inexistência) e ambas esforçam-se por fazê-la chegar aos
outros pelo uso da palavra. Por certo, ambas as posições têm comprovados
benefícios para as pessoas que as defendem, mas também têm a prepotência de
acreditarem que o correcto a fazer é convencer os outros da correcção da sua
própria escolha de vida e de pensamento.
No entanto, o
ateísmo desperta em mim um sentimento de revolta que não existe quando analiso
outras religiões. Quando penso na retórica inflamada de um ateu perante um
crente seguro das suas próprias ideias, lembro-me de uma cena marcante do filme
Green Mile.
Nesta cena, a
personagem interpretada por Tom Hanks, guarda prisional, assegura a um
condenado à morte (papel desempenhado por Eduard Delacroix), a poucas horas da
sua execução, que o rato que tão carinhosamente cuidou durante o seu
encarceramento irá para a Ratolândia, viverá feliz, conhecerá outros ratos, com
quem viverá por muitos anos. Enquanto o guarda prisional descreve este idílio,
o condenado – um homem cujos crimes, naquele momento, já não importam – chora. Despede-se do rato
como se este fosse (e provavelmente era-o) o seu único ente querido na terra.
Mais tarde nesse
dia, já sentado na cadeira eléctrica, um outro guarda prisional sem escrúpulos,
interpretado por David Morse, diz-lhe, nos escassos momentos antes da
execução!, que a Ratolândia não existe e que aquele rato é tão insignificante,
pequeno e sem importância, como qualquer outro rato de esgoto. O prisioneiro
chora novamente e, com estoicismo, recebe o massacre que se segue (quem viu a
cena sabe do que falo).
Quando o guarda
prisional interpretado por Tom Hanks faz este condenado acreditar que existe
realmente uma Ratolândia e que nela aquele rato terá um final feliz,
restitui-lhe a réstia de fé, a réstia de esperança que um Homem pode ter nos
momentos anteriores a uma morte com hora marcada. Quando a desesperança é tudo
aquilo que se pode esperar, a fé é uma luz bruxuleante no final do túnel; uma
crença inabalável, inverosímil e arrebatadora de que, no final, tudo ficará
bem.
Mas, no momento
em que o outro guarda prisional, num cruel e desnecessário acto de despeito lhe
nega esta última luz, aquele condenado descobre e vive o derradeiro medo do Ser
Humano consciente: o não sermos nada, tal como nada é o que nos rodeia, e que ao
nada voltaremos. Com palavras vazias de bondade e de respeito pelo sofrimento
alheio, este guarda prisional abala, para este condenado, os seus alicerces da
fé num mundo melhor.
É isto que
acredito que, num consideravelmente reduzido grau de crueldade!, um ateu faz
quando tenta fazer ver ao crente que a sua forma de vida é errada e que aquilo
em que sempre acreditou não existe. Dizer a um crente de uma religião
monoteísta, por exemplo, que não existe Deus e fazê-lo crer nisso, é
retirar-lhe as pedras basilares da sua moral, da sua conduta; é dizer-lhe que
não haverá final feliz e isso, parece-me, é triste. É revelador de um
auto-conceito, por parte do ateu, demasiado inflamado que o leva a CRER que
está certo porque não existem provas em contrário (um argumento tão frágil,
como simplesmente acreditar que existe Deus). É triste porque combate o direito
de todo o Ser Humano de se iludir a si mesmo.
Não defendo que
a ilusão seja uma forma correcta ou saudável de viver a vida, no entanto, não
existe nenhuma receita universal sobre como vivê-la e, por isso, cada um tem o
direito de viver a vida ou sonhá-la como bem entender.
Também não quero
aqui defender que todos deveríamos ser crentes, se o pensasse, contrariaria o que
acabo de escrever. Defendo sim o direito à fé, o direito de acreditar num mundo
melhor, num “eu” melhor! Isto obriga-me a questionar o que é realmente a fé.
Não será um sentimento de certeza absoluta, isento de um raciocínio lógico que
infalivelmente o comprove? A fé, por definição e enquanto fenómeno vivenciado,
não pode ser decomposta pela dúvida metódica.
Se a fé não é
científica, poderá um ateu ter fé? Acredito que a resposta se inclina perigosamente
para o não. Nas palavras de Kant, a fé é “o modo moral de pensar da razão
quando adere àquilo que é inacessível ao conhecimento teórico”. É, por isso, a
crença naquilo que ainda não foi provado e, para todos os efeitos, uma
necessidade de muitos Seres Humanos. O ateu, com a sua esmagadora necessidade
de compreender e decompor todos fenómenos em seu redor, carece da sensibilidade
necessária para simplesmente acreditar.
É isto que me
incomoda no ateísmo. É esta negação (ou chacota) de um direito individual. É
este atentado perpetrado contra a sanidade mental das pessoas crentes, com quem
os ferverosos ateus digladiam a sua retórica cheia de certezas verdadeiras
apenas por hoje, tal como a história no-lo tem mostrado.
É por isto
também que escolhi o excerto da nota introdutória d’Os Miseráveis para
cabeçalho. A fé, quer seja uma manifestação da sensibilidade do Ser Humano em
apreender aquilo que não é palpável ou comprovável pela razão actual, quer seja
uma necessidade latente associada à religião (e por isso, estigmatizada) ela é
um direito! E, como direito, deveria estar a salvo da dissecação crua e cruel
pelo raciocínio lógico.
Luiza Benatti
"The highest form of ignorance is when you reject something you don't know anything about" Wayne Dyer
ResponderEliminarPosso começar por aqui. Sim, porque a grande maioria das ditas pessoas com fé, também são egoístas o suficiente para rejeitar completamente a ausencia de uma crença religiosa e nem sequer se dão ao trabalho de compreender o porquê de se ser agnóstico ou ateísta e quais são afinal os valores/ideais da pessoa em questão.
Um agnóstico não se revê em religiões, pisca o olho à ciencia e ao que nos permitiu crescer como civilização. Porém não poe de parte o espiritualismo, ou se quizeres, a existência de uma divindade que de certa forma contribuíu directa ou indirectamente para cá estarmos.
Já um Ateísta rejeita completamente divindades sobrenaturais e abraça a ciência, a natureza e a tecnologia como verdades absolutas.
Se pensarmos em termos prácticos, e quizermos separar: teístas, agnósticos, e ateístas, chegamos a uma conclusão simples: os agnósticos estão indecisos e diplomáticamente querem fazer ver a um e outro grupos, que, no que toca ao cerne da questão, nós nunca vamos chegar a uma verdade absoluta (se é que isso existe). Pessoalmente não tenho especial apreço por agnósticos. Simplesmente porque apesar de terem tido a coragem de se revoltar, não se quiseram dar ao trabalho de fundamentar o porquê, e para mim isso demonstra falta de carácter.
Dito isto, porquê ser ateísta? simples, um ateísta procura respostas, não se deixa consolar/abater por superstições, nem credos, nem teme o "oculto" já nos outros grupos isso não acontece. Agora não digo que isso seja necessariamente mau, porque conheço pessoas religiosas/crentes que têm bons valores e boa índole.
O que as pessoas também têm de começar a ter interesse, (porque eu também tive em tentar perceber o porquê de alguém ser religioso e o porquê de existir religião e como é que ela tem evoluído desde o principio dos tempos) é em perceber o que é que um individuo ganha em ser ateísta e que valores o caracterizam. E foi por essa razão que escolhi aquela frase como introdução. Porque de todos os ateístas que eu conheci, a grande maioria tem ideais de como tratar o proximo bastante mais calorosos e genuínos que grande parte pessoas religiosas com as quais me fui cruzando ao longo dos anos.
Mas pronto Lu, isto é uma conversa demasiado complexa e extensa para se ter pela internet, vou-te deixar com a minha verdadeira filosofia:
http://en.wikipedia.org/wiki/Atheist's_Wager
Deus existir ou não, é o que menos importa.
Bjs Princesa*
As variáveis, FÉ, CRENÇA E CREDIBILIDADE, embora muitas vezes tomadas como palavras sinônimas, na realidade são muito distintas, e fazem parte de uma equação muito simples que é:
ResponderEliminarFÉ = CRENÇA + CREDIBILIDADE
ou seja a sua fé em algo (numa doutrina, lei, pessoa, conceito, filosofia, etc.) é o resultado da sua crença nesse "algo", adicionada da credibilidade, com a qual você a reveste.
analogamente, mudando as variáveis da equação (respeitando as regras matemáticas) temos que:
FÉ - CRENÇA = CREDIBILIDADE
ou seja o termo FÉ, quando dissociado da CRENÇA (profunda e íntima, de corpo mente e coração), passa a ter o significado simples e material, de mera imputação de CREDIBILIDADE documental, por exemplo, a FÉ dos tabeliães de cartórios de nota, que ao atestarem a autenticidade de qualquer documento utilizam a seguinte frase:
"O referido é verdade e dou FÉ"
por conseguinte a equação:
FÉ - CREDIBILIDADE = CRENÇA
demonstra que a FÉ quando não alicerçada na CREDIBILIDADE, fatalmente resultará simplesmente numa CRENÇA, porém, obscura, vazia, e totalmente desprovida de um apoio lógico e real, o que nos conduzirá, geralmente, ao FANATISMO;
por fim podemos concluir que:
FÉ - CRENÇA - CREDIBILIDADE = 0
ou seja, a fé "cega" sem alicerces de uma CRENÇA com a CREDIBILIDADE, atestada pela sua própria razão, conhecimento e experiência, se torna vazia, desprovida de conteúdo, e consequentemente INÚTIL.