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segunda-feira, 2 de agosto de 2010

"De quem é a vida afinal?" - Uma perspectiva de enfermagem

"Whose Life is it, anyway?" (De quem é a vida afinal?), de John Badham, 1982

“Ora, uma correcta reflexão sobre esta questão é capaz de relacionar toda a escolha e toda a rejeição com a saúde do corpo e a serenidade da alma, já que é esse o fim da vida bem-aventurada”

Epícuro, excerto da Carta da Felicidade

A análise do filme "De quem é a vida afinal?" trouxe-me sérias inquietações, não necessariamente relacionadas com a eutanásia, mas sim com a condição de tetraplegia da personagem de Richard Dreyfuss. O meu primeiro ensino clínico do Curso de Licenciatura em Enfermagem (CLE) foi numa unidade de neurocirurgia em que muitos dos utentes internados apresentavam tetraplégia causada, principalmente, por acidentes. Foi por isto que este filme me deixou inquieta. No início do curso, a situação de tetraplégia parecia-me o fundo de um abismo, a pior das catástrofes. A pessoa com tetraplégia, manietada pela sua condição física, estaria, para mim, impossibilitada de investir no seu desenvolvimento pessoal, de seguir as suas aspirações. Desde então, não mais me vi confrontada com pessoas nesta situação.

“De quem é a vida afinal” confrontou-me com estes preconceitos adormecidos desde o meu primeiro ano. Embora o personagem manifestasse um desejo de morte e acreditasse no fim da sua vida como única solução possível, os médicos demonstraram uma atitude de obstinação terapêutica. Atitude compreensível, esta a dos médicos, que tendem a ver a morte como o fracasso da medicina – veja-se o aumento considerável da esperança média de vida humana possibilitado por este adiamento constante da morte, através da investigação de novos fármacos, equipamentos, etc. – no entanto, a forma como a justificaram ao seu hipotético doente pareceu- me incipiente e desprovida de fundamentação que tivesse em conta a vontade desta pessoa. Viver por viver não faz sentido, principalmente quando nos referimos a um Ser humano que tende a procurar e construir, ao longo da sua vida, um significado para tudo o que fez, faz e é.

Tem que haver um objectivo. É aqui que devem incidir as intervenções de reabilitação. A própria personagem refere: “Sempre que olho para ti, invejo aquilo que não posso fazer!”. Ora, esta frase revela um intenso sofrimento e a manutenção de objectivos de vida incompatíveis com a sua condição actual. Esta personagem mantém aspirações de vida que devem ser trabalhadas no sentido de construir um projecto de vida viável, realista.

Então, pergunto-me, o que deve fazer o enfermeiro nesta situação? Num dado momento do filme, a personagem refere “já não sou quem era.”. Pois este é um excelente ponto de partida. Claro que já não é a mesma pessoa, já não tem a mesma identidade. Quem somos, ou melhor, aquilo que consideramos que somos é mutável e depende do contexto da nossa vida. Tal como Watson (2002) defende, o Ser Humano é mente, corpo e espírito em interacção e, como os vértices de um triângulo, tende para a harmonia. Quer isto dizer que as alterações das capacidades físicas implicam uma reorganização do auto-conceito da pessoa.

O enfermeiro, baseando-se, por exemplo, nos dez factores do caring (WATSON, 2002), procura construir com a pessoa esta harmonia, esta identidade. É importante que a pessoa compreenda que mantém capacidades, quer estejam adormecidas ou imberbes, e que elas podem potenciar, SE foram trabalhadas, o desenvolvimento da pessoa humana. Que aqui considero como um processo de construção gradual de experiências vividas e analisadas e com significado no continuum da vida (RISPAIL, 2002; JOSSO, s.d.).

Com isto não quero formalizar uma opinião contra a eutanásia - mesmo porque tal não seria verdade – quero apenas que se compreenda que a eutanásia não é a única opção num momento como este. Até porque, infelizmente, o “Homem está condenado a ser livre”, já o disse Sartre[1], e, por isso, o respeito pela autonomia do cliente obriga o enfermeiro a aceitar a decisão da pessoa e a pessoa, a arcar com as consequências das suas decisões.

Regressando ao filme, é então, claro que a alteração do funcionamento desta pessoa não implica a perda da sua identidade, mas sim uma reconstrução. A tertraplégia irá obrigar à construção de um diferente projecto de vida. Afinal, tal como Honoré (2002) defende, o projecto de vida depende do projecto de saúde. Ou seja, a capacidade para o desenvolvimento humano depende do estado de saúde da pessoa, ou melhor, da sua percepção sobre o seu estado de saúde.

Mais uma vez, a construção do auto-conceito é um processo que pode ser desenvolvido pelo enfermeiro. Mobilizando a Teoria do Déficit do Auto-cuidado e a inerente Teoria dos Sistemas de Enfermagem de Orem (1980), encontramos, também, a justificação desta intervenção. Considerando que a autora (1980) postula que um dos requisitos para o auto-cuidado é a manutenção de uma auto-conceito realista, o enfermeiro através de um dos três sistemas de enfermagem – totalmente compensatório; parcialmente compensatório; ou apoio e educação – deve apoiar o cliente no desenvolvimento deste processo.

A estudante de enfermagem, no filme, tem um papel importante nesta intervenção: brinca com o cliente de igual para igual, vê nele uma pessoa tão válida como ela, com tanta dignidade quanto ela e, por isso, procura identificar os seus desejos, as suas aspirações e vontades e actua no sentido de as satisfazer porque também ela, partilha delas, como qualquer Ser Humano.

Em oposição a isto, a relação de paternalismo que os profissionais de saúde tendem a desenvolver em detrimento do livre arbítrio do cliente lesa a Dignidade Humana desta pessoa. Escondendo-se sob a máscara de um maior conhecimento científico, os profissionais tendem a esquecer-se que quem sabe mais sobre esta, ou aquela, doença é o doente porque é ele que a vive e que sofre na pele as suas consequências.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FERREIRA, Vergílio – O existencialismo e o humanismo de Vergílio Ferreira. Lisboa: Bertrand Editora, 2004. ISBN 9789722513654

HESBEEN, Walter - Trabalho de fim de curso, trabalho de humanidade : emergir como o autor do seu próprio pensamento. Loures: Lusociência, 2006. ISBN 972-8930-31-3.

HONORÉ, Bernard – A saúde em Projecto. Loures : Lusociência, 2002. ISBN 972-8383-31-2.

HONORÉ, B. – Cuidar: Persistir em Conjunto na existência. Loures: Lusociência, 2004. ISBN 972-8383-58-4.

JOSSO, MC. – Procura de formação, projecto de formação, projecto profissional como desafios de uma formação criativa e experiencial a explicitar e a acompanhar. S.d..

OREM, Dorothea – Nursing: concepts of practice. 2ª Edição. Nova Iorque: McGraw-Hill book company, 1980. ISBN 0-07-047718-3.

RISPAIL, Dominique - Conhecer-se melhor para melhor cuidar : uma abordagem do desenvolvimento pessoal em cuidados de enfermagem. Loures : Lusociência, 2003. ISBN 972-8383-42-8

ROGERS, Carl – Tornar-se pessoa. 2ª edição Lisboa : Moraes Editores, 1973.

WATSON, Jean - Enfermagem : ciência humana e cuidar : uma teoria de enfermagem. Loures: Lusociência, 2002. ISBN 972-8383-33-9.


[1] Da análise de Vergílio Ferreira da obra de Sartre O existencialismo e o humanismo

2 comentários:

  1. Estou a traduzir dois livros, em colaboração com outra pessoa, para a Lusociência. Um do Bernard Honoré e outro do Hesbeen. Acho que vão ter muito interesse para si, quando os puder ler.

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  2. Com certeza são do meu interesse, obrigada pela sua atenção.

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