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quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A utopia de Thomas More - Uma perspectiva de enfermagem

"a humanidade (...) consiste essencialmente em atenuar os males dos outros, aliviar seus sofrimentos e, com isso, dar mais alegria às suas vidas, ou seja, mais prazer"
Thomas Morus, excerto d'A Utopia

Há pouco tempo terminei a leitura deste livro e acredito que foi uma das minhas leituras mais interessantes nos últimos tempos. Thomas More descreve uma civilização bem diferente da sua contemporânea (a Inglaterra de Henrique VIII) e, mesmo assim, ainda bem diferente da nossa (o século XXI no mundo ocidental). Mas, ainda antes desta descrição, Rafael Hitlodeu, alter ego de Thomas Morus, procura identificar os problemas sociais e políticos (se é que se podem separar...) da Inglaterra do Século XVI, propondo-lhe algumas soluções. Por exemplo, este viajante critica as atitudes do estado em relação às punições por roubo ou assassínio que, à data do manuscrito, estavam em pé de igualdade - enforcamento para todo aquele que cometa um crime, quer seja por roubo, traição ou assassínio. Da mesma forma, Hitlodeu desaprova a lentidão da justiça que, sustentada em milhares de leis que muito poucos compreendem, perde tempo em julgar todos os casos e deliberar justamente sobre a inocência e culpa de todos os réus (quem de nós não se identifica com este facto? Quem de nós nega a lentidão da justiça portuguesa?). Contra esta situação, o viajante propõe a constituição da Utopia, composta por muito poucas leis que todos os cidadãos conhecem e compreendem. Esta alteração drástica na legislação inutilizaria, por exepmplo, a existência de advogados: se cada cidadão souber os pilares em que pode basear a sua defesa, não necessita de recorrer a um "entendido em leis" e pode, sozinho construir a sua defesa.
Continuando na obra, Hitlodeu defende um dos maiores princípios do socialismo e talvez, também, o segredo da vida em comunidade: a divisão equalitária de todos os bens pelos elementos da sociedade. Este raciocínio invalida a vassalagem de alguns justificada pela riqueza de outros, elimina a existência de classes sociais e, com elas, a inveja da posse (convenhamos, todas as guerras começam porque um tem uma coisa que o outro não tem... quer seja terra, petróleo, dinheiro, etc...).
Além disso, Hitlodeu descreve uma associação bastante interessante entre prazer, saúde e prevenção. A obra reza algures que "um sábio preferirá prevenir a doença a solicitar remédios; manter as dores afastadas a recorrer a calmantes; abster-se enfim de prazeres cujos malefícios teria de reparar". Apesar desta concepção ir de encontro com a Grande Saúde de Sfez, esta não procura garantir que estamos todos condenados a morrer saudáveis. Longe disso, procura antes estimular o cuidado de si próprio e a construção de um auto-conceito realista. Vejamos por outra perspectiva, às pessoas de quem gosto, a última coisa que desejaria seria magoá-las, ora, o mesmo se passa comigo, se eu gostar de mim, me tiver numa alta consideração, porque me magoaria? Porque desenvolveria actividades que eu sei que me prejudicam? Com isto não quero afirmar que devemos todos deixar de fumar (numa altura em que a dependência já está instalada, o objectivo não pode ser, à partida, deixar de fumar, mas sim, manter o prazer e o alívio que esta actividade proporciona sob pena de agravamento de outros problemas como por exemplo a ansiedade...) a intervenção tem que ser mais precoce e incidir sobre a própria estrutura da personalidade: as pessoas têm que aprender desde pequenas o que é o amor próprio, a importância de se estimarem. Acredito que o desenvolvimento desta atitude seria preventivo de muitos dos actuais problemas de saúde da sociedade ocidental e que têm a causa principal nos hábitos de vida das pessoas. Esta é uma das intervenções importantes do enfermeiro que trabalha com as crianças e com os educadores das crianças ao nível dos cuidados de saúde primários.
O raciocínio de Hitlodeu estende-se evoluindo do cuidado de si próprio para o cuidados dos outros, elogiando a atenção que o Homem deve prestar ao Homem. De certa forma, tal como More defendeu e tal como está descrito nas principais obras do socialismo, nós temos uma responsabilidade e um dever em relação aos outros, em relação àquelas pessoas que fazem de nós aquilo que somos pelo simples reconhecimento da nossa presença e dignidade. É porque nos importamos com o outro que cuidamos dele, que somos solidários, que recebemos ajuda dos outros. Analisando esta forma de conduta, encontramos os valores fundadores da profissão de enfermagem que se encarrega de cuidar do outro, de o ajudar a construir um sentido para as provações que tem de ultrapassar e, de certa forma, este é também o grande valor da humanidade, tal como conclui More.

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