“(…) a
incredulidade. Assim se defendia o ser humano contra tudo aquilo que mostrava
as indescritíveis crueldades a que podia chegar incitado pela ganância e pelos
seus maus instintos num mundo sem lei.”
Mario
Vargas Llosa, excerto d’O Sonho do Celta

Lembrando-me da
minha recente leitura de O Sonho do Celta, de Vargas Llosa, obriguei-me a
reflectir sobre esta interrogação. São brutais as atrocidades descritas neste
romance que foram levadas a cabo por seres humanos no Congo e na Amazónia, e
todas elas se repetiram e repetem em toda a história da humanidade. Há
portanto, necessidade de compreender este fenómeno e de que forma se relaciona
com a maldade e o respeito pelo próximo. Fiquei com a impressão, ao ler o livro
de Llosa, que há um peso considerável no “sistema”, nos comportamentos
preexistentes. Isto é evidente no discurso das próprias personagens, que assim
justificam os seus actos, quando confrontadas com eles. No entanto, mesmo na
barbaridade do colonialismo, há Seres Humanos que se mantêm imunes ao contágio do
ambiente tóxico e perverso que os rodeia. Ora, esta disparidade do efeito do
meio na personalidade do indivíduo faz-nos crer que não são o sistema ou o meio
os principais responsáveis pelos nossos actos, embora teimemos em desresponsabilizar-nos
com desculpa titubeantes como “sempre foi assim”.
Independentemente
do indivíduo nascer “mau” ou fazer-se “mau”, a maldade é determinada pela falta
de empatia pelo próximo e pelo desrespeito das mais elementares normas de conduta
social (que se fundam no respeito pelo próximo). Correndo o risco de avançar
com um julgamento simplista, poder-se-ia dizer que um Ser Humano maltrata outro
por não ser capaz de se identificar com ele (esta justificação é transversal a
toda a condição de escravatura de um Ser Humano – o escravo é visto como Ser
Humano Inferior), por prazer, por aprendizagem (filhos de pais que perpetram
violência doméstica tem uma probabilidade significativa de repetir o padrão
comportamental do pai ou mãe), ou por vingança. Ora, onde se enquadra o livre
arbítrio?
Continuando esta
reflexão e antes de tentar responder a esta questão, não poderia deixar de ser
abordado o papel da educação nos primeiros anos de vida de um indivíduo. Os
três primeiros anos de vida são primordiais na definição das principais linhas
da personalidade de um Ser Humano. A relação da criança com as figuras
parentais e, mais tarde, com o grupo familiar alargado e os primeiros amigos
influenciará indelevelmente o padrão de comportamento do adulto. Mas há uma
ressalva que deve ser feita, este processo não tem um produto final, independentemente
da importância destes primeiros anos de vida, o indivíduo está condenado a uma perpétua
mudança de mentalidade e comportamento que definirão a sua identidade ao longo
da vida.
Suponhamos que
uma criança nasce “boa”, que no seu genoma carrega a herança do respeito e da
empatia. Como será a sua evolução quando confrontada com um ambiente tóxico?
Dickens é
eloquente na demonstração do seu raciocínio sobre cidades tóxicas que criam
cidadãos perversos. Em Dombey and Son, o autor escreve que a contaminação moral
associada à contaminação industrial (sentido não só literal, mas também associado
aos valores da Revolução Industrial) pervertem a criança e criam “infância sem inocência, juventude sem modéstia,
maturidade que é apenas madura na culpa e no sofrimento”. Com estas
palavras, Dickens assume a atitude fatalista de que o meio influencia
irremediavelmente a identidade do indivíduo. Ora, isto poderia levar-nos ao
extremo de acreditar que filho de ladrão, ladrão será, sem excepções.
Pois eu ponho
seriamente em dúvida este determinismo associado ao berço. É aqui que entra o
livre arbítrio. Dotado de intuição e raciocínio, o Ser Humano toma decisões.
Apesar do conjunto de valores que carrega consigo desde a infância, e também
por causa dele, o Ser Humano poderá sempre analisar opções antes de tomar decisão
e, mais tarde, reflectir sobre a consequência dos seus actos. O Ser Humano,
teoricamente, pode tender para a melhoria constante, desde que assim o deseje,
desde que decida fazer melhor a cada dia, respeitar o próximo a cada dia.
Porém, não é
possível esquecer que o genocídio, a escravatura, a discriminação, o crime e
outras perversões afins existem. Há Seres Humanos que as defendem e praticam.
Porquê? Nasceram maus ou escolheram agir assim? Se é escolha, quando se começou
a tomar decisões com estas consequências nefastas? E porquê?
Não querendo
cometer a ousadia de responder a esta pergunta, parece-me óbvio que cada Ser
Humano agirá de forma única perante circunstâncias semelhantes e que em
situações limite, tais como a subsistência em condições infra-humanas
determinarão o desenvolvimento de comportamentos geralmente tidos como “inadequados”.
Independentemente
da resposta a estas perguntas, o Ser Humano criou o Mundo onde coexistem a
virtude e a maldade nefasta, a fraternidade e o ódio, o que significa que “ambos
os lados da força” fazem parte de cada um de nós, ou pelo menos da humanidade
como um todo. Além disto, o mundo social e moral de que tão criticamente se
fala não deixa de ser uma criação humana. É criado por nós, transformado por
nós e, por isso, assemelha-se a nós.